Carregamos este gene fatalista que pergunta sempre "como é que isto acontece sempre comigo?"; no meu caso, poderia escrever um livro, vá lá, de bolso sobre a minha vida e os papéis e demais itens burocráticos. Há qualquer coisa de perverso nesse universo em que estou representada por um número e ficheiro que tem o condão de desaparecer, extraviar ou então faltar mais um papel ou carimbo. Mas no fim de tanto tempo com estas andanças, já deixei-me de fatalismos e de procurar respostas para questões que escapam completamente da lógica ou debruçar-me em questões aprofundadas sobre a causa de tão peculiar peso karmático. Está mais no rol do "que safoda".
No entanto, temos sempre esta questão tão corriqueira dos infortúnios; quando não somos devidamente recompensados pela vida como achamos que merecemos, e sempre desejamos ter sempre o melhor do melhor, não aceitamos lá muito bem que os retornos sejam tão miseráveis. Se eu fosse uma Madre Teresa, provavelmente iria pensar nos tortos desígnios divinos e na purga de algum pecadilho menor, aceitando por isso mesmo a penitência. O problema é que não tenho lá grandes ambições de santidade, nem sou assim tão abnegada como supostamente acham que deveria de ser. Aquela coisa de ser humilde e acatar as faltas, e mesmo nem percebendo a razão do castigo, aceitá-lo de braços abertos. As coisas comigo assim não funcionam lá muito bem.
A bem dizer, olhando para as notícias que nos são fornecidas pelos jornais, vemos como banqueiros escapam da prisão, políticos são presos por fraudes e depois são reeleitos, vemos bancos que emprestam dinheiro à empresas que não existem e depois penhoram a casa de quem mal consegue sobreviver com o salário miserável. Aqui, provavelmente o Universo e o seu retorno do "cá se faz, cá se paga" cai no esquecimento.
E um cidadão se pergunta, "porque eu e não esses ladrões?"
Não há resposta mágica; perdoem-me por desdizer-me aqui, assumidamente, mas ando com uma grande dificuldade em perceber o conceito "tudo acontece por uma boa razão"; eu acreditava nisso convictamente e até mesmo aqui neste espaço de exercício filosófico dizia isso : tudo tem uma razão para acontecer. Se assim é, ainda não percebi a razão do Sr. Laranja ter uma potencia mundial nas mãos. Agora essa máxima já não faz qualquer sentido, cabendo melhor o conceito de que somos um joguete nas mãos das circunstancias.
Há um determinado momento em que percebemos que nos desgastamos por coisas e pessoas que mais tarde revelam-se fúteis. Com a questão das doenças, essa coisada toda de que nós nos envenenamos e temos hábitos nada saudáveis não cabe lá muito bem como desculpa. Já vi casos demais de gente com hábitos irrepreensíveis a passar por doenças que não deveriam e não mereciam. Montes delas. Portanto, foi outra máxima a cair por terra.
Então, depois de traulitadas mil e de perceber que há lutas inglórias, uma pessoa começa a ver os infortúnios e as súbitas mudanças da nossa vidinha pacata e despretensiosa como transições. Não são linhas tortas divinas nem pontos dados no tecido do destino. São momentos em que escolhemos entre lamentar a nossa desgraçada sorte ou jogamos tudo fora em nome da paz de espírito. Estou mais na segunda opção. E para isso é preciso coragem.
De começo, coragem para assumir que estava errado tanto naquilo que foi acreditando como no falhanço do que fez. Coragem para começar a despejar, deitar fora ou deixar ir aquilo que não traz nenhum benefício. No campo material e emocional, guardamos imenso entulho. É preciso ter coragem para começar do zero outra vez. E aí, começar por perceber que os planos traçados e de longa distância são um factor menor na equação, já que tudo pode mudar quando as circunstâncias mudam também, fora da nossa vontade e controle.
Poderá, do ponto de vista de quem me lê, ser esta uma forma gélida de enxergar o mundo; mas com certeza irão concordar que não vale a pena desgastar a nossa saúde mental e física na sobrevivência de uma causa perdida. E essa causa perdida pode ser um familiar que aposta em ser idiota; pode ser a casa própria que, sabe-se lá com tantas dificuldades e noites de insónia são pagas as prestações, mais o IMI e as outras contas agregadas;pode ser uma relação afectiva que já deu o que tinha a dar; podem ser amigos voláteis e cheios de desculpas. Pode ser também aquela carreira que já não diz nada e que se torna um sacrifício exercer.
Uma coisa é certa: a viagem faz-se mais levemente com menos peso, tanto nas costas como no coração, quando resolvemos deixar ir o que se torna bagagem a mais. E quando uma pessoa começa a perceber, graças a lentidão do Serviço Nacional de Saúde, que acordar todos os dias já é uma grande vitória, o resto é café pequeno. Gastar o tempo de vida, único e precioso em causas perdidas e fatalismos já não fazem parte de uma vida que considero saudável.
Com o tempo, e já sem pena nenhuma, vou abandonando velhas máximas que acreditei em detrimento duma visão lúcida das coisas. É sem dúvida bom acreditar que as nossas acções e os nossos esforços são recompensados pela justa medida. Mas é muito melhor saber refazer a própria história quando o enredo não corre bem. E melhor ainda, é não aceitar abertamente que tudo é fatalmente para ser assim e que não há nada a fazer.
Nessas horas, usa-se um que safoda que não resolve muito, mas alivia imenso. E ir por onde o vento levar e mostrar outras paragens...
Rakel.
Concordo em absoluto. Os planos nunca correm como esperado. Com bolas é que se anda para a frente. O caminho faz-se a caminhar, não a planear. ;)
ResponderEliminarOs planos são geralmente muito bons no papel, na ideia em si; na realidade há tantos factores que não podemos prever que acabam por afundar o melhor dos planos. É mais ou menos como aquela velha história dos passeios programados em que sempre acabam adiados por que chove :) Ninguém arrisca-se ir mesmo com chuva e acabar por divertir-se na mesma. Até pode ser que acabe por ser um dos dias mais bem passados, mesmo fora dos planos.
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