Um pouco esquecidos desde a última aventura, morando numa pacata aldeia alentejana há quatro anos, os nossos já conhecidos Cavaleiros do Apocalipse ajustaram-se ao modo de vida sereno da região.
A Guerra, depois de ver que a humanidade não precisava dele para grande coisa, já que era por voto popular a eleição dos seus enlouquecidos governantes ditando a paz e a guerra, agora usa dos seus dotes... na cozinha. É vê-lo a porrada nos bifes (para ficarem mais tenros) e usando a espada para destrinçar as peças de porco e galinhas. Passa os serões a ver o Ramsay aos berros na cozinha dos infernos e tomou como seu modelo favorito a seguir. E a fazer guerra com a Peste, claro, numa relação de amor/ódio normal nas longas convivências.
E é assim que que começamos hoje este capítulo sobre este quatro (mais ou menos) amigos do Apocalipse.
Estava a Guerra na cozinha a dar porrada aos bifes quando chega a Peste alarmada:
"Guerra!! sabes onde está a Morte?"
"Deve estar lá fora a ver a seara de trigo biológico; o desgraçado anda cheio de vontade de usar a gadanha em algo e espera pelo momento da ceifa...porque?"
E nisso, vira-se para ver a Peste... e perde a voz. Besuntada em álcool gel dos pés à cabeça e a tentar entrar num fato de anti-contaminação, a Peste tem um olhar alarmado.
"Mas que raio de pancada tens tu agora, meu doente mental?"
"Pancada? PANCADA? Mas tu só vês na televisão o Gordon Ramsay e não vê as notícias??" Já há dois casos aqui no Alentejo!!"
A Guerra agarra a Peste pelo cangote, arrasta-o até à janela e mostra:
"Tás a ver alguém por perto num raio de 20 quilómetros? Estamos no meio do nada!"
A Peste, com os pés sem tocar no chão, a tremer por todos os lados, a choramingar de medo, olha a extensa planície alentejana. Nada... só o canto dos pássaros e algum grilo que acordou com a primavera antecipada.
"Mas a Fome anda naquele grupo de cantares alentejanos todos os dias, e ficam ali encostadinhos uns aos outros a cantar..."
É verdade, a Fome, depois de passar por todos os processos de luto pós rompimento com a Gula, a sua fofinha princesa, aderiu ao lema "quem canta, seus males espanta" e entrou num grupo de cantares alentejanos. Melhorou visivelmente e já esqueceu o episódio completamente.
"Mas ó meu anormal, tu és a personificação da doença!!! Tu espalhas, mas não ficas contaminado! Porra! Mas que mal fiz eu para este gajo andar para aqui a dar-me cabo do juízo?"
A Peste, sentindo-se insultada dispara:
" O quê fizeste? Olha...tá com Alzheimer, já esqueceste a queda do Império Romano? A Guerra dos 100 anos, a dos 30 anos? Ahhh já sei, quando andamos lá no Vietnam nos anos 60/70 desta era, andavas tão pedrado que te passou tudo da memória! E que garantia tens tu que eu não apanho doença nenhuma se elas estão cá todas dentro de mim?!?"
A Guerra, com um sorriso sonhador, lembrou do tempo em que eles andavam a espalhar todo tipo de convulsões sociais, onde eram intervenientes do mundo que se desfazia e renovava. Largou a Peste no chão e dando uma chapada nas costas do amigo, relembra:
"Bons tempos, Peste. Bons tempos...Mas agora, a sério. É por isso que não fazes nenhuma refeição connosco e mal falas coma Fome? A sério??? É isso? Depois de tudo quanto o teu amigo tem passado, tu tens essa atitude com ele que sempre foi gentil contigo?"
"Bahh... ele é mais próximo da Morte; e sim, prefiro jantar sozinho no quarto do que arriscar a ficar doente ao pé dele"
"Tu és mesmo chanfrado dos cornos...somos imortais!!! Que diferença faz estar onde e com quem estamos??? Da varíola à bubónica passamos por tudo. Lembra da gripe espanhola? Da tuberculose? Estávamos lá no meio de tudo. E Tu com aquelas merdas de manias, " ai, que preciso de cânfora para a minha máscara, ai que não entro nessa nação, por causa das pulgas", quando eras tu que espelhavas e sem sintomas!"
"És um bruto insensível! Idiota e burro como uma porta! Mais de dois mil anos de andanças pelo mundo e achas que com a nossa idade o nosso sistema imunitário não fica mais fraco? Eu posso ser imortal, mas posso ficar doente, não é? E agonizando na doença por toda a eternidade!!"
" A tua doença, meu cretino, é daquelas que precisa de quarto almofadado e doses grandes de Torazine nessas veias!!"
E já a Guerra agarrava a Peste pelos colarinhos, quando a Morte entra e vê o cenário corriqueiro; a Peste e a Guerra a bulha por qualquer motivo sem importância. Bate com a ponta da gadanha no chão e os dois se separam. A Morte tem um efeito apaziguador imediato. Está acima dos imortais e não escolhe quem. Seja deus ou mais simples mortal, na sua democrática visão, todos são iguais perante ele, e por isso mesmo, todos têm-lhe respeito.
"Bom dia , Morte! O almoço já sai dentro de uns minutos" dizia a Guerra enquanto alisava os colarinhos da Peste e torcia o nariz com o cheiro de álcool gel do companheiro de armas.
"Não tenho pressa, não há problema, disse a Morte. Até porque, só vamos almoçar quando a Fome chegar." E olhando directamente para a Peste, que despejava um frasco de desinfectante nas mãos, perguntou:
"Peste, há algum motivo importante e coerente para que tu não partilhes as refeições connosco? Ou não queiras passar tempo connosco?"
A peste estancou e olhando para a Morte colocou as engrenagens do cérebro a trabalhara em 5 mil RPM; dizer o mesmo que disse à Guerra, talvez não fosse lá muito saudável para si. A Morte era daquelas pessoas que falava pouco e agia mais. Então, fez-se luz e largou aquilo que seria aceitável:
"Bom, sendo eu a Peste e nos dias que correm anda praí o Corona vírus, achei por bem não correr o risco de infectar os meus amigos de há milénios." e sorriu ingenuamente.
A Morte que sempre foi inteligente, olhou para a Peste com um certo brilho nos olhos e com um sorriso repleto de malícia, bate com a gadanha no chão e responde:
"Disparate! Somos imortais e nada nos toca, a não ser o desemprego e mesmo assim, temos nos desenrascado bem! À partir de hoje, jantas e convives connosco!"
Nesse momento, a Guerra, no seu vozeirão de barítono, começa a cantar esse emblemático tema dos Queen, Princes of the Universe, e a desancar nos bifes ao ritmo da canção, enquanto a Peste mostrava a língua e fazia caretas nas costas da Morte, que ia lavar-se para pôr a mesa e ajudar a Guerra. Pára a meio do caminho e sem se virar diz:
"Ahhh, outra coisa Peste, essa língua deve ficar mais dentro da boca do que fora, não vá fazer-te mais tarde, mal à saúde."
E se a Peste é pálida, depois desse aviso ficou transparente. Choramingando a desdita, já pensando em lenços de papel, remédios e desinfectantes, começa a pensar que não vai dobrar outro milénio e que isso tudo vai ser a morte dela.
É então que chega a Fome que ao ver a Guerra a cantar, junta-se ao movimento espontâneo musical, abraça a Peste e puxa-a para perto da Guerra e juntos cantam a plenos pulmões. A Morte ao ver aquele cenário cómico, da inocência da Fome, já mais alegre e que ganhou algum peso, sendo a fome dele apenas a afectiva, com a Guerra a desfazer os bifes, que por levar tanta pancada vai virar carne picada e com uma Peste trémula, chorosa e encolhida pelo abraço da Fome choraminga mais do que canta, entende que, no final tudo vai ficar bem.
A humanidade e o mundo já passou por imensas guerras, doenças e provações. Mas sobreviveu, refez-se e em algumas vezes, percebeu os seus erros.
E a Vida, aquela que contrabalança a Morte, há-de seleccionar aqueles que são mais inteligentes, precavidos e com senso de responsabilidade.
E vamos continuar, apesar de tudo.
Fiquem em casa. Sejam inteligentes.
Rakel.
Comentários
Enviar um comentário
Estamos ouvindo