Sete anos de idade e não podia pintar os coelhos de verde, nem de azul ou laranja. Dizia a professora primária que isso não existia. Voltava com nova folha cheia de coelhos segurando ovos da Páscoa para pintar novamente da cor certa. E eu voltava aos coelhos azuis e verdes, dizendo eu na altura que os coelhos não carregam ovos, então porque não podiam os meus terem outra cor?
O "por que sim" saiu dos limites da minha casa e voou para a sala de aula, saiu da tutela arbitrária e dogmática dos meus pais e foi parar na boca da professora.
Tinha eu mais razão aos sete anos, quando tão possível é um coelho da Páscoa andar por aí com ovos de chocolate, como ele ter pelagem verde ou azul. Mas eram esses os lápis de cor que eu mais gostava e gastava incansavelmente nos meus desenhos. Mas os coelhos foram, sem qualquer explicação minimamente plausível, o grande erro daquele bimestre escolar. Na altura não entendia a razão para tanto alarde, nem porque razão seria isso uma mostra de "rebeldia"
Anos mais tarde, lá pelos onze ou doze anos de idade, empoleirada num escada de livraria, folheei um livro sobre arte e deparei-me com aqueles que se opunham aos coelhos brancos e malhados de castanho claro (os únicos permitidos), dessa realidade que toda gente aceitava como os certos e reais: o abstracto e o surrealismo. A subversão do politicamente correcto e aceitável. Nesse mesmo ano, em consequência de ter algum jeito no desenho e nos pincéis, meu pai decidiu que deveria ir para uma escola de pintura.
Foram meses secantes de natureza morta, só natureza morta; uma pessoa acaba por ganhar raiva da maçã e o jarro, mais a porcaria da toalha enrugada que TODA GENTE FAZIA IGUAL como uma linha de montagem artística. Eu nessas aulas só pedia o momento de parar e limpar o material, fechar a mala e voltar para casa. Eram manhãs de sábado tiradas a ferros. Ia perdendo a vontade de usar as cores como forma de expressão e diversão. E sempre me perguntavam quando estaria pronta para fazer a real representação da paisagem que me indicassem, da cara de alguém ou uma reprodução intemporal de um Jesus loiro de olhos azuis com cara sofredora. E isso me amargava a boca.
A minha colega de colégio e de aulas de arte, medrava na execução dessas representações batidas da realidade que toda gente aprovava. Pois fazia, pois claro, todo o sentido que no Médio Oriente, um homem nascido de uma descendente da casa de David, um hebreu de gema, que ela tivesse um filho loiro de olhos azuis. E eu ia pintando os meus "coelhos verdes" em casa; admito que de alguma maneira, ainda sem muita técnica, ia tentando "transgredir" e sair fora da moldura do Jesus sofredor sem sentir a satisfação de ter feito algo bom. Uma auto-crítica picuinhas? Não sei.
O que tinha de certeza, até ao dia que abandonei lá pelos catorze anos essas aulas, era um pai que dizia que isso do abstracto e surrealismo era tudo menos arte. Sem uma explicação melhor do fatal "por que sim" e de que eu só gostava de porcaria e coisas sem jeito.
A censura ou desprezo aos meus coelhos azuis e verdes foram aparecendo de forma metafórica durante a vida toda, sem explicação, sem uma razão válida. O pior, é quem sem o meu pai a formar essa verdade absoluta e talhando de forma forçada o meu gosto e destino, agora é essa forma de realidade feita dos indignados por dá cá aquela palha. Os mesmos que defendem a liberdade e fazem dela o bastião (desde que seja dentro desses parâmetros acanhados feitos por eles). Tudo abala essa gente e tudo é passível de ser condenado.
As perguntas da infância que primavam pela simplicidade, inocentes e coerentes, agora com o passar dos anos ficaram mais complexas e filosóficas, mas não sentem qualquer diferença temporal. A sensação é a mesma. É apenas uma continuidade mais elaborada.
Das coisas simples e complexas que fazem parte da nossa vida, o que mesmo interessa não tem qualquer explicação. E cada vez mais, a evidência maior é que, quando decidimos pintar a nossa vida com coelhos verdes e azuis, mesmo tão fora do enquadramento, parece-me melhor do que a arte de viver em linha de produção repetitiva. Não é possível fazer, dentro do abstracto, a mesma coisa duas vezes. E assim deveria de ser tudo o resto.
E não, não se pode pedir comparações, a não ser que copies uma natureza morta vezes sem conta.
"Pergunto-me porque não posso voar pelo céu
Por que nos meus sonhos eu tenho asas"
MUCC in Mother
Rakel.
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