"Já está na hora de mudar a decoração da minha mesa, já estamos perto da Páscoa"
Eu sem querer ouvir, escutei essa sentença no meio da conversa ocasional da hora de pausa, e fiquei ali boiando no assunto, pensando cá com os meus botões que certamente seria os preparativos para os habituais almoços/jantares de família.
E ela saca do telemóvel, que dantes servia como meio de comunicar, agora é o depósito de toda a vida em fotografias, e me mostra a mesa. Enorme. Com a parafernália toda de pratos, marcadores, os talheres todos, os copos da praxe, os guardanapos nas suas argolinhas de prata, mais os castiçais e velas e toda a cangalha do Natal, que esticou até perto da Páscoa.
"Todas as estações e quadras festivas, eu mudo a decoração da mesa." dizia ela
E eu, que melhor teria sido permanecer na ignorância, perguntei:
"Mas então, é sempre assim as tuas refeições?"
"Não, que disparate! Isso é só para ficar assim, para ver"
"Então...vocês comem aonde nessas datas festivas?"
"Na cozinha, pois claro!"
...
Olhei para aquele aparato de capa de revista e me perguntei se era eu que era retardada ou se o mundo é outra essência que eu não alcanço na minha simplicidade.
Depois, o dedo furioso(com anéis desde a base até perto da unha) correu pelo ecrã e foi a procura, para me mostrar, a casa de banho...nunca vi tanto anjinho, nem mais emérita catedral, apinhados em tudo quanto era canto daquela casa de banho. Dentro da banheira, sapos e cobras de loiça faziam com as plantas (que nem sei se são naturais) um tipo de Éden de azulejo.
Quer dizer, ainda bem que é apenas para ver e não usar. Num momento tão íntimo quanto é estar sentada no troninho, debaixo do olhar fixo de vintena de anjinhos? Dar um pum será dos piores sacrilégios e ofensa à santidade. E ficou por aí? Nop, claro que não. Quartos (plural) que são apenas para ver, de hóspedes, mas apenas para ver. Tudo pejado de anjinhos...chega a ser um bocado sinistro,credo!
Isso passou-se há uns meses, e que a falta de tempo não me permitiu discorrer por aqui sobre isso; mas nesta segunda-feira, a coisa ficou clara quando ela me ouviu dizer para outra pessoa que queria desfazer-me dum serviço de café da Vista Alegre que nunca foi usado e que me foi oferecido há vinte anos. Achou estranho o facto de eu querer ver-me livre de algo que não uso, apesar da "marca" conceituada. Ela... uma vez me perguntou qual era a "marca" dos meus gatos, portanto faz todo o sentido, não é? Mas mesmo assim, ela em resposta disse-me que já tem 5 serviços completos da mesma "marca" e que ia ganhar outro da sogra e se eu quisesse ela me dava. Vade retro!
Uma vida em display, onde a casa é uma montra perfeita, feita ao gosto do usurário que só vê e não usa, de uma vida pouco perfeita. E acho que afinal, a precisão milimétrica de cada garfo, dos copos de vinho, daquele aparato todo de uma casa atafulhada de coisas...compensando sem muito êxito, o buraco emocional que foi cavado há tanto tempo.
Tentei, sem sucesso é verdade, explicar que do meu ponto de vista, prefiro ter só mesmo as coisas que uso e me fazem falta. Que o resto, o supérfluo e "marcas" não pesam na minha felicidade. E que cada vez mais, o que vou dando ou vendendo, está a abrir espaço, a simplificar o meu dia e a dar mais horas para aquilo que gosto de fazer.
Mas o mundo é feito destas diferenças...eu vou dando espaço, criando uma vida mais simples e fácil. Há quem se atafulhe com coisas e faça o consumo ser o paraíso de quem vive de vendas; o chato é que nunca chega, nunca é o suficiente.
Consomem e consomem-se, enchem cada canto, cada pedacinho do espaço por olhares parados e inanimados... e eu continuo a achar que a vida é mais simples do que isso.
Rakel.
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