Marteladas Na Infância




Chegava em casa, largava a mala no sofá, corria ao quarto para tirar o uniforme da escola, pendurá-lo no cabide ou aventurar-me a dar a conhecer a barra da saia descosida (resultado de um desacordo de quem era a vez de ir aos balouços), vestir a roupa "de guerra", fazer os trabalhos de casa, quando havia por fazer (já que eu adiantava-me e ia fazendo na sala de aula enquanto cantavam o hino ou rezavam) para ter aquela curta hora de rua. Berlindes, um gafanhoto gigante apanhado na casca da árvore, a miúda que mostrava a boneca nova, a bicicleta do amigo que agora tinha aquelas franjolas coloridas no para-lama traseiro...até chegada a hora do berro materno e hora de entrar.

Lavadas as mãos e despejados os bolsos dos "teusouros" encontrados na rua, fossem eles insectos ou pedrinhas, chegava a hora de ver os bonecos na televisão. O monstro das bolachas, o sapo perseguido pela porca loira e de mau feitio, o Conte Drácula e aqueles dois amigos que tinham o patinho de borracha e uma amizade a toda prova: aqui o Egas e Becas, lá no meu mundo de infância, do outro lado do oceano: o Beto e o Ênio. Boas memórias das risadas, das brincadeiras inocentes, do tempo que ter um amigo obeso era coisa rara, e só mesmo se a mãe dele o entupiu com leite de coco e coisas assim para deixar a criança tronchuda. Daí que comer bolachas como o monstro azul e meio louco não era perigo, nem alarme para futuras banhas a abater. Tudo era simples, ingénuo e seguro.

Aí uma pessoa torna-se adulto, o mundo, sabe-se lá a razão, dá em doido e deixar uma criança, como me acontecia nesse tempo, brincar pelo bairro às voltas com bicicleta e amigos, aos 6 ou 7 anos de idade, é coisa impensável nos dias que correm. E de todas as coisas cretinas que poderiam emergir de alguns cérebros com evidentes problemas psicológicos, é isso de agora, invadirem o mundo infantil, inocente e despreconceituoso.  Sexualizando ou encontrando padrões absurdos.

Li recentemente uma notícia de que os personagens ícones da Rua Sésamo, Egas e Becas eram apontados como gays. E essa perspectiva é para mim como esventrar um unicórnio (símbolo dos mais altos padrões de pureza) e deixar com as tripas ao sol e moscas. Isso por que os dois amigos vivem na mesma casa, vêem televisão juntos, comem juntos. Isso abre, pelo jeito, o pressuposto de que duas pessoas amigas a viver no mesmo tecto são gays. O que seria se agora estreasse a Anatomia de Grey e os papéis de Meredith e Cristina? Seriam forçadas agora, por essa estupidez de cotas e não de mérito, forçadas a representar um papel de casal gay só pela amizade e cumplicidade? A amizade pura e simples, feita de afectos sem qualquer conotação, agora precisam ser rotulados de acordo por esse "movimento" de sexualização de tudo e mais um par de botas? Valha-me Alexandre Dumas e os seus Mosqueteiros... hoje seria apontado como um grupo gay que não saiu do armário ou como chauvinista e imporiam uma qualquer mocita de misturas várias e que representaria a mais forte e invencível e tudo e tudo, contra o patriacardo podre e dissoluto desta era de... igualdade.

No comunicado feito pela empresa que agora detém a Rua Sésamo lê-se, para minha paz de espírito e satisfação, que o conceito destes dois bonecos foi pensado que, dois amigos podiam conviver apesar das suas diferenças. Que o papel do programa era fomentar justamente o convívio são entre culturas diferentes e a inclusão de todo tipo de pessoas... ou bonecos.
Mas há pior, até o Tomás, o comboio está a ser alvo de críticas, sendo acusado de racismo. Embora os fãs da série tenham vindo em apoio contra essa estupidez; o caso é que não há nada, mas mesmo nada que não vejam apontem e acusem como racismo e sexismo.

Uma coisa que, por princípio, deveria ser uma escolha pessoal, uma aceitação do seu eu individual, passou agora, por sabe-se lá a razão, a ser um critério por cotas e que define-se desde cedo; cotas, não mérito por competências profissionais ou emocionais. E por isso será então que os coxos emocionais andam aí aos molhos, paletes deles, defendendo a sua frágil interioridade apostando no conceito de vítima social e preconceito. Façam isso, mas em idade adulta e com a possibilidade, merecem isso, de escolher aquilo que poderá ser contra corrente.

Gostei da resposta que explica os dois personagens; realmente, acredito que uma amizade, os melhores amigos, possa ser feita sobrepondo a diferenças. Aceitar o lado torto de cada um, e no caso, um Egas caótico, com sentido de humor retorcido, pica-miolos mas de bom coração a conviver com o certinho, crítico, arrumado e ponderado Becas. E vendo bem, nos dias que correm, até mesmo essa certeza que nos cabe de aceitação na diferença fica em risco pelos distorcidos valores de que uma amizade só pode existir quando se pensa de igual modo e que devemos dizer amém à tudo. E isso, mais uma vez, não é aceitação.

Veremos as cenas dos próximos capítulos, e quanto decidem debruçar-se pelas coisas que não tem o mínimo interesse...em vez de exigirem mais rectidão nos juízes (que segundo parece até chegam ao posto com negativas) e que deixam sair cá pra fora espancadores e violadores. Isso, sem dúvida, será caso para mais atenção do que a cota de cores num desenho animado ou programa infantil.

Viremos a ter fogueiras a queimar livros e pensamentos como aquele tipo do bigodinho ridículo ariano, que queria construir um mundo pelos conceitos que ele achava serem certos?

Rakel.




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