Elas



Disse-me que ouve vezes sem conta a playlist que considera a banda sonora da vida dela; aquela que traz as agridoces lembranças . Disse-me que que sim, nesse tempo faziam-se boas músicas e que agora já nada é assim. Disse-me que muitas dessas músicas faz-lhe pensar que, se soubesse o que sabe hoje...teria mudado muitas coisas e escolhido outras.

Essa playlist é daquelas que não saiu dos anos 70/80, daquela que vem com o atrelado carregado de memórias que vão sendo repetidamente puxadas de novo ao presente. Pensei um bocado no assunto, desse estancar num determinado período da vida em termos musical e não saber de mais nada que surge por aí. Desse invocar de lembranças e sentimentos que já existiram, que foram marcantes e que definiram alguns hábitos de agora. Na frase anterior, usei 3 verbos no passado. Passado a ser trazido ao presente. Passado não vivido ou mal vivido; passado de amores perfeitos que já murcharam.

Ela tem aquele condão de escolher mal e porcamente à quem entregar-se de corpo e alma; tomam-lhe logo, de tão transparente que é, os pontos fracos: as palavras que gosta e precisa de ouvir. E pega de estaca, regam-lhe com as tais palavras doces e ensaiadas, começam com gestos e delicadezas para acabar ela...cheia de dívidas e nódoas negras no corpo e na alma. Mas espera, entre frases inspiradoras do livrodatromba da cabrita de Jesus, vulgo Alexandra Solnado, pensando que ela fala-lhe directamente, que esse homem fantástico e desenhado na sua imaginação apareça.

E a puta da minha paciência por um fio...

Comentei há uns tempos à outra ela sobre desse fenómeno de ressuscitar "mortos", sejam lembranças de pessoas ou sentimentos; dessa crueldade que fazemos à nós próprios ao lembrarmos demasiado desses sofrimentos ou desilusões. E ela me perguntou, como raios fazia eu para desapegar músicas de coisas passadas. Uma boa pergunta, já que tive que aprender a fazer isso. Desapegar pessoas de músicas, de lembranças marcantes ou decepções. Há duas escolhas, e fazer a decisão entre elas depende da capacidade de perceber que há-que mudar maus hábitos que não acrescentam coisas boas ou continuar a dar vida ao passado. Troquei as voltas, substitui a lembrança de pessoas por outras coisas: como era esse dia, se chovia, se tinha comido alguma coisa deliciosa, se tinha rido com outras ou se tinha descoberto algo de novo. E quando realmente consegui colocar em prática aquela máxima  de que tudo é um ciclo, com tempo de vida próprio.

E uma coisa que achei interessante, foi aquilo que ela disse depois de falarmos disso: "Eu sou a própria engenheira dos meus túmulos". Ela tem consciência desse hábito de venerar os mortos e desavindos, do que já foi e não está cá.
Fiquei a pensar nisso, dessa forma tão comum que temos de dizer que antes sim, aquele foi o grande amor da vida, o maior e melhor de todos, mesmo que não tenha durado muito. Ou se calhar foi-se arrastando demasiado tempo.

Passados uns dias, uma outra ela, que já há 3 anos que não sabia nada dela, chamou-me para uma cerveja e dois dedos de conversa. É realmente impressionante a forma como, vivendo na mesma cidade, pequena e durante duas décadas, mesmo assim somos capazes de estarmos sem ver algumas pessoas. Ou deixarmos de ser vistos. Dizia-me ela que o namoro de 9 anos tinha acabado, que estava em fase de recuperação e seguindo com a vida. O estranho é a forma como decidiu mudar a vida. Durante os tais 9 anos de namoro, ela vivendo em casa da mãe dela e ele vivendo na casa da mãe dele, andaram concentrados apenas neles. Sem trabalho, sem investimento em qualquer outra coisa senão o envio sistemático de currículos e esperar que a sorte desse o ar da sua graça. Agora ela, nesse despertar tardio, decidiu que quer sair de casa da mãe, mas só se encontrar trabalho aqui na cidade e ficar cá. Não há corte, há uma tentativa de esticar o cordão e ficar por perto...porque ela acha que a história dela e do ex ainda não acabou. Dizia ela, que essa foi a sua grande história de amor, e que algo assim, não acaba dessa maneira. Ela não percebe, ela não entende. O grande amor...é aquele que se vive agora, não o requentado e cheio de dúvidas.

Respirei fundo...olhei para o céu azul duma tarde morna e agradável

Negação pura e simples, não é o tal processo de seguir em frente; vejo diante de mim uma adepta da relação microondas:  arrefece e aquece até ficar intragável e deitado fora; um desperdício de tempo e energia. E as contradições dentro dessa negação são tantas, que olhando para ela, quase na casa dos 40, me dá a perfeita visão do quanto temos a capacidade de nos enganar, de nos sabotar. Por medo, por ilusão, por falta de amor próprio. Porque uma pessoa que te chama de gorda, que diz que estás a ficar feia e que então, encontra uma grande amiga que o ajuda a perceber que não é feliz...bem, diz muita coisa.  E ela insiste que isto está apenas numa "fase".

Tenho que ser pragmática e honesta neste ponto: eu sou uma ela. Talvez apenas decidi que dado o tempo que tenho à minha frente, curto e incerto, não há espaço para cometer os mesmos erros, nem acreditar nas mesmas coisas que não dão certo. Talvez por isso a minha playlist é feita de coisas novas, para criar novas e melhores lembranças: talvez por isso tenha percebido que é deixar de rodear campas, de carpir defuntos que até estão noutra dimensão de vida/morte que não controlo. E de perceber que se os ciclos começam e acabam é deixa-los fazer a sua rota natural e simples.

E deixar que o vento leve o pó das lembranças...


Rakel.






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