Naquele dia, não sei o estado de espírito daquele homem ao sair de casa pela manhã; nem sequer o seu nome, nem sei que sonhos carregava dentro de si. Desconheço-lhe o sentido de humor, se cumprimentava as pessoas na rua ou se gostava de vinho ao invés da cerveja. Mas hoje, depois de 29 anos passados, continuo a ver nele aquela força que cada um carrega e que pouco usa: o de fazer frente mesmo que seja a última coisa a fazer.
Um homem, sozinho no meio daquela avenida, de pastinha numa mão, talvez o almoço na outra, em frente aos tanques de guerra, num começo de Verão quente e revolucionário na China.
O mais interessante desta parte da história actual é que os tanques pararam; nos "bons" velhos tempos do tio Mao, teriam passado por cima. Mas algo indubitavelmente forte passou nesse gesto do "rebelde" em causa. Uma tomada de posição solitária, pacífica e de anti-agressão e violência, mas sem dúvida imbuída de significado: eu, apesar de tudo finco pé e não deixo vocês passarem. De cada vez que os tanques queriam desviar ele punha-se na frente. É preciso ter um par deles muito grande ou não ter mais nada a perder.
Segundo consta, depois de tourear o tanque e fazê-lo para, escalou-o e foi conversar com um dos soldados. Depois, levado por dois homens, nunca mais soube-se dele que, se calhar, foi um dos muitos fuzilados e que estão dados por desaparecidos.
Insurreição , no caso deste homem, ou seguir aquilo que a alma nos impele não é o mesmo que o instinto de manada que se junta e tem mais atenção ao que não interessa de todo e que seguem... porque sim. Nem é a menina a abraçar o polícia na manif para sair na foto do Pasquim da Manhã. Aí é que bate a diferença.
Jadav Payeng começou em 1979 e com a idade de 16 anos, a ver os estragos feitos pela desflorestação na sua ilha, lá na Índia. Décadas passadas, este homem que agora é um conservador florestal, continua a plantar e a desenvolver um projecto que também será um amor pessoal: o meio ambiente. O que dantes era um local ermo e sem quase fauna, agora nas sombras das árvores que vem plantando há décadas, aparecem elefantes, tigres e antílopes.
Jadav na floresta que foi plantando aos poucos ao longo de décadas |
Acreditou e apostou naquilo que acreditava.
Christian Moullec, o homem ganso de França, apesar da visão pouco abonatória dos que o rodeiam e que começou sem apoios, é aquele que "ensina" aos gansos órfãos o caminho de migração, ano após ano, década após década. Se não fosse ele, provavelmente estas aves já não se veriam nos céus franceses, porque certamente, outras coisas muito mais importantes, como o futebol ou debates de outros géneros estariam em maior evidência.
Moullec e os seus bebés |
Acreditar e levar avante o que nos impulsiona é verdadeiramente impressionante. Por mais louco e impossível que pareça, mas levado nas calmas e metodicamente, vendo por si mesmos os resultados. São pessoas que caem no esquecimento, que não são vistas nem achadas, que não esperam mais do que verem os resultados dessa visão tão pessoal de realização.
Mas podem crer numa coisa, mais fácil será o Sr. Laranja ganhar um Nobel do que estes dois senhores acima citados.
No entanto aquele homem, aquele sem rosto nem nome que pudéssemos apontar, que fez frente aos tanques em Tiananmen, lá do século passado, mas tão perto das nossas vidas, talvez seja aquele que mais signifique o que temos de mais forte, do nosso poder de cidadão anónimo que pode fazer a diferença. Mesmo que seja o maior risco que venhamos a correr.
Há duas coisas que fizeram pensar quando me dei conta desta data, a de hoje:
Para já, que com sucessivos aumentos dos combustíveis, o assunto esteja a ser visto como que uma piada passada em memes na Internet, a falarem de carros como os dos Flintstones ou resgatar o mercedes de duas orelhas como solução. Ao mesmo tempo vejo acesos e conturbados debates sobre a sanidade mental e a permanência no poleiro do Gnomo Verde de Alvalade e se o JJ vai ou não andar de camelo no deserto. Isso sim, é coisa de peso e que vai repercutir depois no custo de vida e que merece manif. Que povo é este?...
É este o povo que venceu a batalha de Aceh em 1569, na costa de Sumatra, em que era apenas uma, repito UMA Carraca portuguesa contra 20 galés, 20 juncos de guerra (que poderiam chegar aos 120 mts de casco) e mais 200 barcos menores? Ou perderam-se tomates?*
A outra coisa que me fez pensar é no momento que atravesso, o pouco que acredito depois da razia do último par de anos em que meti na balança da lógica algumas das minhas mais afincadas crenças. Ficou muito pouco, talvez demasiado pouco; além de pouco fiz um compromisso pessoal em ser menos pública do que antes e menos... explosiva. Poderia dizer que são os anos, a tal da maturidade e tal e couves. Mas não, foi antes um tardio acordar.
Mas acho que, nos devidos momentos e contra a opinião geral, acabo por demarcar e colocar-me fiel aos princípios que achei por bem continuar a "militar" e que não carece de seguidores. Outros, resolvi pura e simplesmente deixar que seguisse o seu curso previsto. Começo, meio e fim. E talvez, como muitos outros que decidiram deixar de agradar uma certa fatia de público, de fazer o que toda gente faz e que deixou de se explicar, prefiro colocar a energia e o tempo que tenho em algo útil e que não precisa da aprovação de ninguém, e que apesar de tudo, faz-me sentir com mais sentido naquilo que faço e vivo.
No entanto, mesmo sem saber quem foi aquele homem em frente aos tanques e sem saber o que foi feito dele...por vias das dúvidas, hoje vou colocar um palito de incenso a queimar e desejar que essa pessoa esteja em paz neste, ou quem sabe, noutro mundo.
Rakel.
* isto dos tomates é outra parte da história deste país que foi capaz de mostrar o dedo do meio à quem pensava que ia derrotar-nos e acabou derrotado. E foi da boca de António da Silveira que saiu essa do "tenho um par deles grandes e bem duros e que vai-te dar cabo do canastro". Mas isso fica para outro dia.
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