Uma linha de névoa paira por cima da erva molhada, deixando uma capa húmida e perolada; o frio e o escuro adormeceram a vida natural, colocou as pessoas em suas casas, longe da neve e gelo inoportunos e incómodos.
Diariamente era notado que que a chuva, copiosa e enfurecida por ventos, ia espaçando como um choro interrompido por soluços ou cansaço. Diziam que Ela chorava por falta Dele, na sua solidão nessa escuridão imposta pela separação necessária. Às vezes possuída pela ira e o desconforto solitário, fazia dos ventos tempestades que encapelavam o mar, arrancava árvores do solo e inundava tudo.
Ela sabia que o tempo Dele retornar, demorado para quem se separa de alguém que ama e que lhe completa, estava a chegar; os narcisos brancos e amarelos já estavam a florir. As estrelas de prata, rasgando caminho entre a neve, despontavam destemidamente à procura do céu azul; tulipas e lírios espigavam em altura e desabrochavam em cores vibrantes. O frio está a perder força, o céu começa a mostrar o seu azul límpido e a luz, ainda fraca e fugidia, desponta sem grande força para derreter o gelo.
Das tocas surgem as primeiras lebres espicaçadas pela fome, dos ninhos embutidos nas árvores saem as gralhas e as cotovias em busca, no solo mal descoberto, das primeiras larvas e insectos. A Primavera ressurge depois de um longo Inverno, trazendo novamente a promessa de novas vidas e abundância.
Ele ainda não despertou, depois da dura despedida, num corpo velho e cansado, recuperava aos poucos a sua forma inicial. Ali deitado, num nicho entre rochas e árvores, numa cama de folhas e abrigado dos ventos e da neve, dormia e regenerava nessa lentidão perfeita e necessária para que cada detalhe, cada ínfima parte corresponda ao conjunto. Tem sido uma longa espera, longas noites desde a despedida feita promessa.
Acordar parece um tarefa difícil de progredir; as mudanças operadas, depois da estação anterior, foram enormes. Renascer é um processo lento, laborioso e muitas vezes doloroso.
A pele do rosto agora era luminosa e rosada; as rugas e a barba embranquecida deram lugar ao rosto quase imberbe, despontando aqui e ali uma penugem dourada. Os olhos, que dantes tinha perdido o brilho, que quase cegos despediram-se dela, agora Ela esperava vê-los brilhantes e vivos, apesar de ainda permanecerem fechados nesse longo sono. O corpo maturou em músculos elásticos e ossos rijos, as costas direitas e as mãos de dedos longos espreguiçavam-se na cama de folhas. A letargia desse sono transformador ainda levaria alguns dias para acabar. Ela, depois da noite mais longa, velou pelo sono dele, ainda quando apenas era uma pequena luz pulsante na escuridão. Todas as noites vigiava, permanecia emudecida e ansiosa diante da metamorfose espantosa de um corpo que se desfez em pó e renasceu; agora, vendo-o renascido e forte, impacientava-se pela lentidão desse despertar tão esperado.
Mais uma noite chegou com ela a velar-lhe o sono, a ver o cabelo sedoso enrodilhado nas folhas, o peito a subir e descer na respiração calma e compassada. "Acorda" pedia Ela num sussurro ansioso, e Ele, como que emergindo das água profundas, abre os olhos: dourados, límpidos e luminosos. Esticou-se ainda espreguiçando os braços juvenis e lentos pelo longo sono, esboça um sorriso tímido e sonolento e viu-A ali parada com os olhos presos nos dele.
O sorriso alargou-se ainda mais, sentou-se na cama de folhas e esticou a mão, como que chamando a companheira de sempre. "Bom dia, minha Amada" disse ele , "Bem vindo sejas, meu Consorte" . Ela então aproximou-se e aceitou a mão estendida; sentou-se ao seu lado e passou os dedos pelos cabelos agora negros e sedosos. A saudade, imensa e longa, fê-La abraça-Lo com força. Precisava de sentir-lhe o cheiro de agulhas de pinheiro, do cedro e carvalho; do abraço dos braços fortes que iriam ajudá-la na difícil tarefa de fazer renascer o mundo. Semear , maturar e colher; nascer, viver e morrer. Essa é a ordem das coisas, esse é o movimento das estações e de todos os viventes.
Luminosamente, o dia nasceu trazendo a promessa de luz, calor, anunciando uma nova estação de renascimento depois de um longo sono invernoso.
E tudo começa nesse abraço entre Ela e Ele.
Rakel.
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