Lesto & Incansável



Há sempre esse lado ambíguo das histórias do "antigamente"; por um lado contam-nos da dureza da vida, das reguadas nas mãos, do caminhar quilómetros até a escola, do trabalhar de sol a sol e da tal sardinha para sete pessoas. Do outro temos aquela velha frase para quem torce o nariz às modernices dos dias de hoje dizendo "que antigamente é que era bom" desfazendo tanto nos hábitos como nos conceitos.

Uma coisa é certa, no agora temos aquela pressão velada mas constante da vida contra-relógio, de tudo ter que ser para amanhã. Altas expectativas, corrida ao sucesso e termos de comparação que devem caber de forma igual para todos. O nível é de excelência e nada menos do que isso. Regular ou normal é coisa que não serve de meta na vida.

No entanto, e por mais vida saudável que se faça, de comer muita batata doce e frango grelhado,a beber água aos litros  e outro tanto a suar nas passadeiras ou aulas de musculação e step, é ver como cresce de maneira alarmante os casos de cancro as mortes por AVC ou ataque cardíaco fulminante. E tudo com gente nova demais para ter tantas mazelas.

A vida moderna trouxe-nos uma quantidade de coisas interessantes que, em princípio, serviriam para nos dar mais tempo para "aproveitar a vida". Mas a coisa pia fino no que toca nessa dinâmica que é consumir e trabalhar para pagar o consumo. Ou como nos obrigamos a não ser nada menos do que excelência nesta realidade incontornável que é "ninguém é insubstituível".

Então, em termos de comparação...

No antigamente, uma mulher paria em casa os filhos (no caso a minha mãe assim foi, nascida na casa da minha bisavó) e ficava 40 dias de repouso. Não necessariamente deitada na cama estes dias todos, mas fazia pouco e repousava muito. A família (mãe, tias, avós e todo o lado matriarcal) ajudava nas lides domésticas, fazia aquelas comidas especiais à recém mãe e muito mimo aos dois, filho e mamã. O parto em si tem o seu lado de violento para os dois, e não por acaso ainda hoje morrem crianças e mães mesmo com todos os cuidados hospitalares. Então fazia todo sentido um tempo de repouso/adaptação que todas as mulheres tinham nessa época.

A mulher moderna não; mal passam 6 horas de um parto normal e toca de levantar da cama e ir tomar banho mesmo que ainda tenha aquela sensação de ter sido atropelada por um autocarro, ter ganho um andar novo e ainda sentir os efeitos das hormonas a tentar regular-se outra vez. E no que toca ao segundo ou terceiro dia depois de ter alta (temos que sair logo do hospital para vagar camas) já esperam que seja craque em trocar fraldas, amamentar e que será a super mãe que cozinha, lava e passa ao mesmo tempo que troca fraldas e adormece a criancinha. Não basta ser uma mãe normal, tem que ser logo de caras a melhor mãe.

Eu ainda fui do tempo que um gripe era sinónimo de cama e sofá, canja quentinha, repouso e muitos líquidos. Da fruta descascada e de ficar comendo só o que me apetecia. também era um preventivo para não espalhar a gripe e conter as contaminações. O que para nós, desse tempo, cavalhavam como ginjas. Mas isso durou pouco, pois assim que entrei na vida adulta a coisa mudou. Posso dizer que depois de ter entrado na Idade Moderna fui muitas vezes trabalhar com febre, rouca e completamente K.O. Mas não havia maneira de compensar uma baixa, já que as contas não levam desconto por doença. Li que nesta semana que passou, 3 adolescentes e mais outros tantos jovens adultos morreram com a gripe A na Inglaterra. Já lá vai o tempo que ser jovem e com sangue quente na guelra significava um sistema imunitário mais combativo.

Mas a vida é sempre a correr e comigo não foi diferente.

Trabalhei por turnos, noutras vezes acumulei mais do que uma função e numa bela manhã de Junho, com um hamburguer na mão, cheia de fome e eléctrica a ver o sol a nascer, dei-me conta que tinha trabalhado 21 horas seguidas. Isto é aquilo que chamam as benesses da vida moderna, que foi trabalhar de sol a sol, mas...não como antigamente. Antigamente acordavam com o sol e deitavam com o sol... hoje temos a tia EDP que fazem os nossos dias maiores, esticando até ao raiar de um novo dia. É vero

Com tanta pressa de chegar nesse ponto de excelência que todos almejam e colocam como fasquia, andamos aqui a perder horas de sono, comendo quando calha, de um lado para outro esmifrando tempo onde não há para no fim pagar as prestações de algo que deveria nos facilitar a vida. No noves fora, fica que não levamos nada desta vida. O carro, a casa de luxo, as quarenta dúzias de sapatos e mais alguma coisa ficam cá.

Já não é coisa rara ouvir dizer que fulano, aquele tipo cheio de saúde e que praticava desporto agora anda noutras batalhas; o cancro segundo dizem está a ser encarado como uma doença crónica e que no futuro será como um tipo de diabetes. Mas enquanto isso vai roubando pessoas que conhecemos e estimamos. Sem dó nem piedade.

Pressa e mais pressa, a corrida ao topo, onde ninguém fica eternamente e vamos sendo surdos aos avisos do nosso corpo. Pressão que sobe, o sono desregulado, perda e aumento de peso em oscilação e nós... só correndo.

Invariavelmente, o corpo cansa de pedir para parar e finca os pés no chão e põe-nos mesmo no lugar ao dar-nos "algo" que assusta como o catano e que faz repensar tudo quanto são escolhas e aquilo que realmente precisamos.

E ir levando com calma as birras e os desacertos que encontramos por aí, já que nem vale o desgaste de dar rebate. É deixar seguir e esperar que passe.

Já não há pachorra para pentelhices sem jeito.


Rakel.



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