Escuridão



Tudo é igual e ao mesmo tempo diferente; a paisagem em redor agora completamente adormecida pelo sopro frio do Inverno silencia tudo à volta. Já não há restolhar de folhas quebradiças da cor do fogo, nem os pássaros cantam as suas canções alegres. Os que voam para sul, há muito abandonaram o lugar e aqueles que só acordarão na Primavera estão enrolados, quentes e adormecidos nas suas tocas.

Ela ainda está com Ele, segura-o no regaço atenta a cada respiração, a cada pulsação lenta e espaçada. O seu olhar prende-se ao rosto que em tão pouco tempo foi alvo de mudanças; a barba e o cabelo encanecidos, os dedos agora são como galhos nus e secos  entrelaçados com os Dela. Já não há no olhar aquele brilho bravio e sedutor, agora reflecte-se o cansaço e uma sabedoria infinita.

O tempo cobra por cada estação o seu tributo, seja ele o mais nobre ou o mais humilde dos viventes; nem mesmo Ele escapa dessa roda que gira e perpetua os ciclos de renascimento, vida e morte. É assim que o mundo vive e se transforma.



Em todo este tempo, Ela esteve presente e a assistir a decadência do companheiro; nunca deixando de segurar-Lhe o corpo contra o seu; e muitas foram as vezes que as palavras foram desnecessárias, muitas mais foram as vezes em que o olhar Dela ficou cativo do Dele. E nessas horas, nas palavras que não eram ditas, reverberavam alto toda a tempestade de sentimentos. Uma união que já existiu antes mesmo de acontecer.

Agora, a tarde escoa-se tão rapidamente como a vida Dele; a bola de fogo que alumia uma parte do dia, agora já está tão fraco como Ele. Em cada fôlego arrancado do peito Dele, a bola de fogo descai mais um bocado no horizonte. Ela assiste esse compasso, o peito Dele a encher-se com dificuldade e a bola de fogo a mergulhar mais abaixo. A fina névoa começa a surgir, cobrindo com um manto pálido os que assistem ao seu fim . O lobo deitado aos pés Dele permanece vigilante, o corvo em cima do galho encolhe-se contra o vento. A cobra, há muito adormecida, será a única que irá acompanhá-Lo, já que também carrega em si o acto de renovação.

De cada vez que a luz descai no horizonte, em cada respiração tirada do ar com mais dificuldade, Ela segura-O com mais força; tenta adoçar com o seu calor o fim inevitável. Os dedos Dela, feitos de luz, entrelaçam-se mais nos Dele, sustentando-O e dando-Lhe o conforto possível. Os olhos Dela pregam-se no horizonte, meia linha de luz e é tudo quanto resta de tempo. É já quase a hora, o tempo urge e Ela olha para o rosto tão conhecido e tão amado de todos os tempos. Ele então abre os olhos pela última vez, já sem brilho, já sem viço mas prende-se nos Dela, a boca seca e gretada esboça um sorriso e com o que consegue arrancar do ar como força, sussurra docemente: "Espera por mim, minha Amada, voltarei".

E assim, nessa promessa nunca quebrada, morreu o Dia, começou a Noite mais escura do ano; o lobo ao aperceber-se da morte Dele, ergue a cabeça e lança um lamento para a noite. O corvo sai do alto do carvalho e vem juntar-se ao lobo. A noite então, como homenagem, veste-se de negro e adorna-se com as estrelas mais brilhantes. Tudo pára, tudo silencia.

Ela ainda segura nos braços o Amado, sabe que ao pousa-Lo no chão não restará mais do que pó; pela última vez passa os dedos de luz sobre o cabelo longo e envelhecido.  Um dedo delicado desenha-Lhe o contorno dos lábios, aqueles eram feitos de sorrisos e beijos. Já sente a falta de tudo o que a prata ou ouro não podem comprar: da voz e do toque, do cheiro e do calor; do abraço e do olhar.

Ainda fica com Ele nos braços, até que por fim começa a verdadeira despedida: fecha-Lhe os olhos, compõe-Lhe as mãos e deixa uma bolota na boca. Pousa-O docemente no chão, vendo-O desfazer-se em pó que o vento leva. Ao erguer-se, apesar dos mil astros no céu, Ela sente-se sozinha, abandonada. Ainda levará muito tempo até que Ele retorne, jovem, bravio e sedutor; até lá, a morada dela será o céu infinito.

Mas esse frio solitário que fica com a partida Dele faz com que, enquanto Ela sobe até às estrelas, caia a chuva fria e fina ou flocos brancos e gelados. São as lágrimas dela por Ela e por Ele.

Yule.



Rakel.

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