A Espera


Com os olhos pregados no horizonte, ele percebe o cansaço que embrulha-se no corpo como uma manta macia mas pesada. O seu vigor desvanece em cada tarde, e em cada manhã que os seus sentidos despertam, já sente que aos poucos já não é o mesmo.

O riso e a dança, a sensação vibrante da sua natureza viva e crescente chegou ao apogeu no sol quente do Verão, amadureceu o fruto, comeu dele, deliciou-se com o sabor doce e deixou novamente a sua semente para renascer mais tarde.

Agora caminha em passos lentos e sente o estilhaçar das folhas debaixo dos pés, as cores mudaram e agora são de fogo; as castanhas e bolotas substituem as bagas e flores; o vinho feito entre canções e danças agora adormece docemente a espera do momento certo para ser provado, servir para aquecer e agradecer. O ar já ganhou outro cheiro: das manhãs nebulosas e frias paira no ar o silêncio que pede contenção.

Ele senta-se ao pé do carvalho olhando à sua volta e a espera: ela há-de chegar, mesmo que demore, ela virá. O corvo, o primeiro dos companheiros, vem-se juntar a ele. Asas negras, olhar perspicaz e o mensageiro de bonanças e sortilégios. No ramo mais alto observa tudo e será o primeiro a anunciar a chegada dela.
O lobo junta-se ao grupo e deita-se perto dele, ambos aquecendo-se com o contacto milenar e a lealdade nunca quebrada. Ficam assim os três, no silêncio contemplativo, apreciando cada restolhar das folhas levadas ao vento ou vendo o esquilo ocupado em juntar mais uma bolota, para o inverno longo e frio, na sua toca. Lentamente o lobo levanta a cabeça ao perceber o deslizar sorrateiro da serpente; ela faz também parte do grupo que espera junto com ele a chegada dela. Ela desliza pelo braço dele e enrosca-se na sua cintura; ela mais do que ninguém conhece esse ciclo primordial pelo qual ele vai novamente passar.

Enquanto ele esta sentado ali encostado ao carvalho, passando os dedos no pelo grosso e macio do lobo, começa a perceber que os olhos vão ficando gastos. Já não enxerga tão longe quanto antes; percebe que os sons distantes já não são tão fáceis de separar: é o vento ou a água corrente do rio indómito? Olha para a mão que afaga o lobo e nota como os dedos estão calosos, a pele mais dura e sem aquele viço juvenil. É o preço a pagar pelo tempo e pelo amadurecimento, a juventude e a beleza são efémeros, apenas uma distracção e tudo e todos caminham para esse declínio. Somos passageiros de um mundo que não nos pertence, a não ser à ele.

A tarde vai-se desfazendo aos poucos numa linha de névoa distante em cores esbatidas e aparece no céu o primeiro sinal de que ela está a chegar. Aos poucos o azul escurece e ao redor dele tudo acalma-se, tudo silencia-se ainda mais do que antes. Nas tocas e ninhos, enroscados e adormecidos, animais e plantas descansam com o fim da luz diurna. Lá no ramo mais alto do carvalho, o corvo trocando o peso do corpo entre uma pata e outra consegue ver, bem ao longe, a presença dela. Crocita alto o suficiente para que o lobo levante a cabeça e sinta no ar o perfume dela. Este abana a cauda e senta-se olhando para o mesmo ponto onde o corvo fixa o olhar. A serpente tão cansada quanto ele não faz qualquer movimento ou participa nessa antecipação. Deixa-se ficar enroscada na cintura morna e macia dele deixando para os outros as boas vindas à ela.


E ela chega já na noite escura de véu pontilhado de mil luzes, os pés descalços tentam fazer o mínimo som de perturbação. Todos dormem, menos ele que a espera. Desliza entre as árvores, salta as pedras e espraia-se pelo chão. Mesmo com os olhos gastos, mesmo com a manta do cansaço que repousa nos seus ombros, ele a reconhece e a saúda docemente. Ela senta-se ao seu lado e abraça-o gentilmente, no seu regaço ele descansa a cabeça cansada e sabe que, até ao último momento, ela o segurará nos braços. Até que a escuridão da noite seja maior que a luz do dia ela estará ao seu lado, vendo as árvores na sua nudez, o gelo cobrindo o solo e quando o fumo nas lareiras subir e espalhar o seu odor, ela estará lá com ele.

Ele sabe que este ciclo de vida e morte faz parte deste mundo feito por eles; ambos conhecem-se desde sempre, os opostos que completam, o que semeia e a que recebe a semente, o que caça e a que cura e assim tem sido por todos os dias do mundo.

Ele agora adormece no regaço dela, ambos abraçados e a espera; o fôlego pesado e cansado dele é embalado pela doce voz dela a cantar sobre os rios e vales. E assim vão ficar, até que chegue a noite mais longa do ano, quando ele, então despede-se dela mas pronto para regressar novamente aos seus braços. E nessa altura, vão fazer novamente que o mundo floresça, renasça e perpetue-se.

Desde que o mundo nasceu, sempre assim foi. Companheiros e amantes, equilíbrio necessário para a vida.

Abençoados sejam.


Rakel.

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