Festival de Folclore ou Pões-te A Jeito



Há umas décadas atrás, quando o meu irmão ainda vivia aqui em terras Lusas, eu e ele adolescentes com pouco mais de um ano de diferença de idades, saíamos com amigos comuns. Embora não fosse e nem seja muito habitual irmãos partilharem amizades, o certo é que a "gang" era sempre a mesma e nesses tempos que nem sequer cogitávamos as bebidas "armadilhadas" ou grandes perigos nocturnos, o certo é que, saíamos todas as noites com hora de recolher. Dia seguinte era dia de aulas, de levantar cedo (e fui do tempo de aulas ao sábado de manhã) e esse meu irmão, sem emenda e vergonha na tromba apanhava, com muito pouco, uma valente bebedeira; mas ele era do estilo bêbado chato : o chorão reclamador.

Mal subia a percentagem de álcool no sangue e elevava-se à quinta potencia o "ninguém me entende" ou "ninguém me ama, ninguém me quer", acompanhado de paragens pelo caminho, sentar no chão e chorar rios de lágrimas. Eu na qualidade de irmã um pouco mais velha, não sei a razão ao certo, além de ter que tomar conta dele, ainda por cima era eu que levava com o sermão e missa cantada da nossa Dona Mãe. Ele bebia, eu levava a rabecada.

O certo é que ele colocava cá para fora toda essa insegurança, essa certeza cimentada em dois pequenos percalços amorosos  (a namorada que antecedeu ao último auge etílico reclamador tinha-o trocado por um espadaúdo oficial do exército) enchia-me os ouvidos com aquela velha conversa de que "as mulheres são todas iguais", "os amigos só aparecem quando estás bem", "toda gente usa máscaras e não é real" ou a célebre "a vida tem uma porta giratória onde toda gente passa e não fica ninguém". Vezes sem conta. Ninguém merece...

Entre fazer um caminho do ponto da carraspana até a minha casa, coisa que em estado normal faria em uns dez minutos, nesse estado anestesiado e chorão levava bem hora e meia. Sabendo que desrespeitando a hora de recolher vinha o castigo de ficar sem saída no próximo fim de semana e como brinde o raspanete, eu passava-me da marmita, puxava-o da calçada e pedia que se deixasse de merdas senão o deixava ali mesmo e ia para casa sozinha. Era nessa altura, é que ele olhava-me com os olhos rasos de água, beicinho tremulante, e dizia-me: "vês? até tu não me amas e vais também abandonar-me, tu a minha irmã mais velha, minha guia, meu ombro, a única que me entende e blábláblá..." Arre égua...

No dia seguinte esse bebedolas não se lembrava de nada, estava no seu completo conjunto (ele e o seu enorme ego) e dizia-me que isso tudo era invenção minha para denegrir a boa imagem dele e que foi culpa minha termos chegado fora da hora de recolher. E como era esperado esse meu comportamento, negligente e relaxado, ele o pobre inocente, sofria as consequências e das quais não tinha culpa.
Ele e o Ego eram difíceis de lidar no dia a dia, ainda por cima, sendo o menino de ouro da mamã (e ainda hoje é) ele sempre estava certo mesmo não estando, e quando não estava, arranja de maneira retorcida argumentos para provar a sua inocência e a incompetência de quem estava com ele e o arrastou para maus caminhos e fins. Não é a toa que o rapaz é hoje  advogado... o que explica muitas coisas.

Mas o pior de tudo é que tem muita gente que funciona assim.

Colocam na cabeça um determinado perfil generalizando comportamentos e pessoas; a seguir comportam-se de maneira a testar a capacidade de endurance de lidar com uma personalidade que limita e baseia tudo no modelo pré determinado e generalizado. Não dá benefício da dúvida ou uma possibilidade de surpreender-se, pois tudo está fatalmente a caminhar para o costumeiro fracasso, então, para quê investir ou acreditar? Aí, por muita boa vontade que qualquer pessoa bem intencionada tenha, percebe que bate contra esses argumentos e comportamentos irredutíveis. Não há espaço de manobra, o tempo arrasta-se e andamos em círculos. Se fazemos aquilo que o comportamento dita, aí estamos a ser justamente aquilo que esperavam de nós: incompetentes, relaxados, previsíveis e incapazes.

Hoje percebo que, se tivesse feito das tripas coração e tivesse deixado vez por outra o meu irmão a curtir a carraspana depressiva na rua, talvez ele teria deixado de ter esse tipo de comportamento (embora que, o raspanete fosse maior, pelo menos seria merecido).  E no caso, quando vemos um comportamento que por antecipação prega o fracasso e tritura a paciência e desgasta o nosso lado mais honesto...é dar tempo e espaço para ver se a ficha cai. É certo que em determinada altura há-de vir com aquela história de "estás a ver, afinal eu sempre tinha razão?", mesmo que tenha feito tudo para atingir esse ponto de "eu consegui provar aquilo que pregava". Mas para isso, trabalhou e pôs-se a jeito.

Dedico este post ao  meu irmão Sérgio, e aos que tal como ele, que só para provar que tem razão e nunca erram, trabalham mais para o fim esperado do que deixar em aberto as possibilidades. Não são expectativas, são possibilidades. Se colocam todo o empenho nisso, aquilo que recolhem é justamente isso.

Então, não reclamem.

Rakel.


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