Muita gente desdenha da sabedoria popular pois a conotação mais corrente de popular é de ser rasca, falso ou baixa. A questão de que povo é algo vulgar e com falta de brilho, mas em muitas coisas, a sabedoria popular acerta no alvo de maneira simples.
Acho que toda gente já ouviu falar sobre a questão de alguém ter o coração partido; a situação não é relativa a um problema nas artérias ou cavidades. É uma questão emocional de alguém que passou por uma decepção amorosa. Digamos que antes do século XX seria aceitável acreditar que alguém sofresse desse mal, chegando os mais sentidos e profundos sentimentos de perda a uma morte envolta em sombras e tristezas. A epítome do romantismo e do gótico eram esses amores impossíveis, intensos, assolapados e que acabavam tragicamente. Daí que perceber que os grandes amores eram aqueles que nunca saíam do ideal e que nunca chegaram a ser realizados. Teresa e Simão, Eurico e Hermengarda, Tristão e Isolda (embora esse idílico amor fosse forçado por uma poção mágica) e Romeu e Julieta são símbolos do amor não concretizado, impossibilitado por questões de classe e impedimentos sociais e levados aos extremos.
Chegamos aos dias de hoje, pós revolução industrial, plena época cibernética e do faz de conta, do usa hoje e deita fora a seguir, pensando que isso de coração partido é uma questão que resolve-se simplesmente com uma boa dose de anti-depressivos e a saudável convivência dos amigos e umas rondas pelos sites de encontros. Iluminados pelo bombardeamento de informação disponível, tentam encontrar soluções em livros de auto-ajuda, de segredos e de vivências sofridas. E vale tudo: descobrir os signos compatíveis, coincidências de encarnações anteriores, tarot, bola de cristal e Prof. Xixumba a trazer de volta amor perdido.
Mas querendo ou não outorgar veracidade ao assunto, existe de facto o síndroma de coração partido; conhecido também como Takotsubo Cardiopatia e devidamente documentado e estudado , fala de pessoas que sofrem desse mal e que podem inclusive definhar até a morte. Resumindo, uma pessoa que passa por um desgosto emocional tremendo fica à mercê do stress, esse stress contínuo e não tratado leva ao estado de ansiedade constante. Querendo ou não aceitar o facto, o órgão que mais sofre com o stress e com a ansiedade é justamente o coração; juntem à isso o sistema de auto-punição ao assunto e temos alguém que poderá morrer tanto pelo desgaste físico como emocional. Um coração partido poderá ser devastador. O que enternece por outro lado é esse conceito de um amor para vida toda e insubstituível; mas convenhamos, é assustador.
Mas vamos supor que alguém passe por isso e que consiga, a toco de medicação, terapia e uma vontade de ferro (ou aquela réstia de esperança de um retorno) ultrapassar essa doença. Ou que gaste dúzias de caixas de lenços de papel, caixas e caixas de gelado, umas noites ébrias e outras de purga em ouvidos alheios e consiga ultrapassar. Usando essas cola-tudo e arames para consertar o que foi esmigalhado, tempo e paciência (e tudo que fica estilhaçado em caquinhos minúsculos, leva o seu tempo de reconstrução) consegue finalmente recompor-se e voltar a sentir-se mais humano. Mas não sem perdas e danos.
A sabedoria popular diz, que não há nada como o tempo para curar os males, que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe. É certo que isso tudo poderá ser ultrapassado e colocado novamente a pulsar normalmente no peito sem dor constante. A aceitação de que há começo, meio e fim para algumas histórias pessoais em que um lado aposta mais do que outro. É o risco inerente de dar de si tudo, é um salto de fé enorme. Conheço pessoas que passaram por isso, emprestei os meus ouvidos e muitas purgas, vi momentos...mais ou menos e momentos verdadeiramente horrendos. As pessoas aparentemente parecem ressurgir completamente recompostas, inteiras e prontas para outra. Mas...
O que sempre percebi sobre as cicatrizes que ficam de cirurgias e acidentes, é que essa pele nova e cicatrizada é sempre mais grossa. São as marcas de guerra que ficam da história que o nosso corpo vai sofrendo com os desgastes, perdas e danos. Imaginem então quão grossa será então essas "cicatrizes" de alguém que conseguiu sobreviver ao síndroma de coração partido. Essa pessoa, que passou fases horrendas, até sorri, fala normalmente, já não desenterra o defunto e até, por vezes consegue ter um tipo de "relação amistosa" com o/a ex. Mas aquilo que percebo, e não são poucas as vezes, é que a perda ultrapassa o dano. A perda de confiança nos outros será talvez aquela que mais prevalece; um resguardo natural, um tipo de profilaxia usada para garantir não vir a sofrer novamente da doença que tanto mutilou a vida. Tem relacionamentos? Sim, voltam a ter, mas numa existência precária e sempre temendo dar demasiado em troca de pouco.
A pele grossa por vezes é suficientemente forte para proteger, mas ao mesmo tempo impede que algo verdadeiramente bom aconteça. Aquilo que eu percebo sobre amor, bem... é muito pessoal, e como já disse antes, provavelmente será uma tradução que não encontra eco facilmente. Mas mesmo assim, acredito que amar é algo bom, saudável e de duas vias. Quando deixa de ser bom, de nos fazer felizes, então deixou de ser amor e passou à fase de obsessão, doença e dor. É vivido e exercitado, é verbalizado e constantemente alimentado. Não é uma garantia per si, mas algo que é entendido e construído além do sentir e desejar. E que eu saiba, quando construímos uma casa para morarmos, nunca começamos pelo telhado, mas sim pelos alicerces.
Entre perdas e danos, podemos escolher, depois de usar muita fita-cola e arames para consertar o que foi destruído, fechar tudo a sete chaves e não dar a conhecer a luz do dia ou ao luar. É uma opção perfeitamente compreensível, mas ao mesmo tempo triste de saber. Há riscos em tudo, em cada decisão tomada, em cada caminho escolhido. Não há destino, fado ou dedo do criador no assunto. Não sei, não tenho bases credíveis, só as minhas teorias inspiradas, para entender que há grandes amores, pessoas únicas que nos tocam cá dentro de forma indescritível e fantástica. Mas não acredito que serão apenas elas a darem essa experiência de vida. Naquilo que dizem na crença popular, que só existe um grande amor na vida, eu prefiro acreditar que, o grande amor é aquele que é vivido. Hoje, agora, aberto, sincero e de todo coração.
Isto é para ti, que balanças entre a vela e a sombra.
Rakel.
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