A Carta



Meu caro amigo,

Não te pergunto se estás bem, pois é sempre uma incógnita decifrar se o teu tudo bem é mesmo um tudo bem ou um pró forma ao qual nos habituamos a largar. Nesse caso, e dado que transbordaste em palavras, assumo que pelo menos estás bem o suficiente para pensar em cada palavra, em cada sentença pousada nas linhas invisíveis da tua tela.

Sabes que sou do género mais prosaico e que quando não estou bem digo-o logo e sem cerimónias; não tenho talento para fingimentos, actos teatrais de "the show must go on" e nem acho que isso seja uma forma honesta de tratar um amigo. Ou estamos bem ou não estamos.

Tu falas de fé como se ela, a fé, fosse igual para todos; compreendo que haja um conceito básico para a fé, as nossas crenças adquiridas ou transformadas pelas traulitadas da vida. Obviamente, a nossa fé e crenças vão mudando conforme vamos vivendo e aprendendo. Mas isso não quer dizer que eu deixe de ter fé ou tenha fé a mais e desmerecidamente por algo ou alguém. Vai cair no mesmo contexto do estar bem ou não; essa fé existe por si e cimenta-se pela existência de algo ou alguém que transcende em explicações.

Falas também do acto de magoar; é interessante perceber que magoamos mais vezes sem perceber do que intencionalmente. Mas isso se deve ao facto daquilo que também dizes, e muito bem, das pesadas expectativas que colocamos nos ombros dos outros ou de objectivos que acarinhamos. Quanto maior for a expectativa colocada em algo ou alguém, maior a decepção e mágoa adquirida. O desgraçado que nada sabe desse imbróglio fica com uma culpa que não lhe pertence...apenas por ser ele mesmo, como é e sempre foi. Mas aí temos aquele velho caso, das pessoas que esforçam-se para cumprir as expectativas que assumiram vestir. E nesse caso, não sem razão, vamos parar naquilo que tu dizes que, para muita gente, a auto-estima fica penhorada pela perspectiva, a imagem que os outros tem delas. Como se estivéssemos debaixo da lente do microscópio presos numa lamela e sendo vistos apenas como uma mera bactéria e micróbio nadando sem identidade e de forma errática.

Então, meu caro amigo, deixa-me que te diga: a minha fé por ti e por todos aqueles que fazem parte dos meus afectos é algo que nem à ti posso explicar. Existe por si e deixo que esse valor seja sempre alimentado e cuidado até ao momento que eu veja que um dos lados não está feliz. Mas já são muitos anos, não é? Há muito tempo deixei-me de questionar os movimentos, as idas e vindas, o tempo e espaço, no geral, tudo aquilo que eu não tenho controle. E eu sei que não posso controlar tanto quanto pensei que poderia. Portanto, o lema actual é viver um dia de cada vez, resolver um problema de cada vez e perceber que não é da minha índole agradar ao grande público. Nisso, não houve mudanças.

As pessoas confundem facilmente as palavras; hás-de perceber que muitos confundem humildade com servilismo. Outras seriedade com falta de sentido de humor ou amargura militante. Outros vêem numa pessoa mal educada e mal formada uma pessoa de "personalidade forte". Se as pessoas confundem termos, o que não farão com as fotos polaroide que tiram de cada pessoa que conhecem? E naquele espaço em branco que fica por baixo da foto (que serve para segurar a foto enquanto seca ao estilo abanico) escrevem o rótulo que mais convém-lhes colocar. E fazem isso muitas vezes para distrair a atenção delas mesmas. Dos falhanços e desventuras, o tanto quanto ainda não fizeram, a falta de coragem, os anseios e por aí vai. Essas opiniões não tem qualquer valor, pois nem resvalam perto daquilo que realmente é e sempre foi. Ignoro-as simplesmente, e sigo aquilo que acho que devo de seguir.

Afirmo-te categoricamente: tudo isto não é um faz de conta. A admiração é recíproca; realmente percebemos-nos mesmo quando os silêncios entram pelo meio das palavras e, na verdade, há tantas coisa que não carecem de afirmações contínuas. Eu sei que tu sabes, o tudo e o nada ao mesmo tempo aquilo que eu não digo e que ficas tu por dizer. E logo depois desaguas em palavras soltas e sentidas, que vão dos afectos ao descalabro da revolta. Ninguém é simplesmente águas serenas nem somente mar bravio. Vagamos entre essas águas que ganham ímpeto ou acalma-se. Eu sei.

Também sei que os medos nascem do que desconhecemos; somos assim desde que nos colocamos de pé, que habitávamos cavernas e andávamos a cachaporra com pedaços de ossos e pedras. Tememos aquilo que não conseguimos explicar e entender, aquilo que a nossa visão não apanha e falta ao nosso tacto e olfacto. Parece que é preciso uma prova física para que tudo seja real, que seja plausível. O medo do escuro é aquilo que se traduz da incapacidade de enxergar, não é? E nele podemos colocar todos os habitantes dos folclores e mitos que nos vão dando gota a gota desde que nascemos. Não vemos não percebemos e tememos.

Se é que posso pedir-te algo...é que nunca deixes de dizer  o que precisas de dizer. Continua, não permitas ou penses que deves calar. Não vou rir por que me pedes, se o fizer é por sentir e ver graça nisso; nem te esforces e prometas me fazer rir. Não sou um público que tens que agradar numa sessão de stand up comedy, basta-me como és. Não mudes por razão nenhuma, se o fizeres é por sentires que deves. Faz por ti. Sê egoísta como sempre afirmaste ser, pelo menos foi a tua forma honesta de te descreveres, de ser esse o resultado da tua relutância em ser o que esperam de ti. As palavras, como tu e eu sabemos, tem essa força avassaladora e transformadora. Tentamos da melhor maneira, egoísta ou altruísta, decifrar e expirar cada uma delas cuidadosamente, mesmo que seja ao vento, mesmo que só vá caber muito longe e num só par de orelhas. Se te posso pedir mais uma coisa... é que nunca me prometas nada; faz só aquilo que realmente a tua alma te pede, sem sacrifício das tuas escolhas e do teu conforto pessoal. Repito; continua a ser honesto, mesmo que isso aparentemente magoe; isso sim, é verdade, magoa só uma vez, mas a lembrança do engano é perpétua e mais vale assumir aquilo que realmente podemos e queremos fazer do que tentar agradar, encaixar naquilo que esperam de nós ou cumprir expectativas.

Se alguma vez as grandes palavras tiverem que ser colocadas para fora, serão quando estiveres diante de mim, se as sentir cá dentro e olhando-te nos olhos.

Sorri, quando vier de dentro.


Da tua


Pituxa



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