Estado de Negação ou Eu Conheci Pollyanna



Olhos rasgados e estreitos fixaram-se nos meus; na falta de palavras e na ausência de sons ela só tinha o olhar para me dar. Um corpo franzino que mal começava o dia e já se isolava de tudo com a mudez e com a surdez, deixava-se ficar ali deitada no sofá, dormitando ou ocasionalmente fixando o olhar dela no meu. Ela não me conhecia, era a primeira vez que me via , por isso a primeira coisa que percebi nela foi um misto de curiosidade e desconfiança. Foi isso que li no olhar, quando por segundos fixava-se nos meus. Deixei-a ali ficar num mundo que desconheço por completo, esse mundo sem sons e palavras e que realmente assusta-me.

Por entre corredores e salas dei comigo num lugar onde o sofrimento é visível; aí os olhares são de desespero, olhares de alguém preso dentro de um corpo decrépito e que vem falhando todos os dias, mas aquilo que chamam de cuidados, vai prolongando não para o benefício do fim do sofrimento, mas para aqueles que os amam continuarem, nem que seja mais um dia, a tê-la por perto. E nunca um olhar me pareceu tão desesperado, tão sofrido. E sem palavras fiquei ali a olhar para ela que a voz é só um gemido, um pedido que não encontra paralelo em palavras, não há vocabulário concebido: é desejo que a deixem ir embora. Fiquei ali uns minutos a olhar para as mãos trémulas, o corpo tão frágil e o olhar tão desesperado.  É inconcebível que uma pessoa tenha que sujeitar-se, no fim do caminho da vida, à tanta degradação, indignidade e sofrimento. Eu não entendo, eu não consigo compreender e gerir a montanha de sentimentos que isso me dá.

Noutra sala, mais ampla e cheia de confortáveis cadeirões e muita luz, estavam ali sentadas quietamente mais uma data de ausentes. Ausentes no olhar, sem prestar grande atenção ao programa, um que se propõe a ser o lugar da alegria. E não vi um único sorriso, um menear de cabeça ao som da música. Só vi pessoas com olhares pregados num ponto qualquer e distantes do mundo em que estão; talvez lembrando o nascimento do primeiro filho, das dificuldades da vida, do trabalho árduo da casa e da educação da família. E nenhum fixou o olhar no meu; por isso decidi não perturbar esse grupo ausente e saí dali.

Eu vi o fim que todos nós, talvez um dia, tenhamos que passar. Talvez a vida, num grande acto de benevolência decida que o nosso fim seja abrupto; mesmo que seja dilacerante ou brutal. Seria mais digno e sem dúvida uma sorte. Mas não essa forma feita de feridas na carne e na alma. Desse olhar desesperado e pedinte que não lhe prolonguem mais esse rol de dores e indignidades: a de não ser capaz de fazer por si e depender de tanta gente que nem conhece e quando tudo parece tão imensamente pesado e solitário, fugir nessa ausência do presente e refugiar-se no passado.

Passadas umas horas, ela jovem e sorridente perguntou-me o que tinha achado de tudo; infelizmente para ela, mas felizmente do meu ponto de vista, fui honesta: a decadência, a degradação prolongada pelos milagres da ciência viraram o meu mundo do avesso: uma coisa é saber ou entender que isso existe. Outra bem diferente é assistir isso tudo, prestar atenção, olhar nos olhos e perceber a dor e um grito mudo pedindo um fim. A jovem assustou-se e quase a vi colocar os dedinhos nos ouvidos e a dizer "lá lá lá, eu não estou a ouvir isto"; ela colocou a mão na minha frente como que exigindo para parar.

"Eu quando vejo e escuto alguém dizer o que acabou de dizer começo a pensar "não, não, Não!! pois não é isto que devemos ver aqui. Aqui o que devemos ver é o lado bom, a alegria do conforto de viver em boas condições e com cuidados continuados. Eu venho para aqui com essa perspectiva positiva e gostaria que encarasse da mesma forma. Entro aqui pensando que é um lugar alegre"

Durante uns segundos fiquei ali, pasmada com a situação: há 11 dias atrás, tinha escrito um post sobre essa cretinice do positivismo puro e tendo como personagem de ficção desse mundo idílico de unicórnios cor de rosa e de arco íris com purpurina uma menina chamada Pollyanna; a que estava sempre contente e tudo era felicidade. E neste dia, ali estava eu diante dela, em carne e osso, cheia de palavras ocas mas que toda gente gosta de repetir, próprias de quem não levanta o cu do cadeirão, não sai do gabinete e não olha nos olhos das pessoas. Nesse momento lembrei de outro personagem de ficção de quem tenho alguma simpatia chamado Dr. House. No primeiro episódio da série, a paciente já cansada dos tratamentos e diagnósticos decidiu assinar a sua alta compulsória, e nas palavras dela, voltar para casa e morrer com dignidade. Tirando o "you're an idiot" do começo da frase, repeti o mesmo que ele disse : a morte não tem nada de digno: é feia e é sempre horrível.

Pollyanna não gostou e disse que eu pensasse melhor no assunto, pois é algo que toda gente terá um dia que passar. E foi esse estaladão que me deu por dentro, foi essa perspectiva que virou o meu mundo do avesso e me entristeceu profundamente. Eu já tinha percebido, em cada olhar perdido, mudo e sofrido que não é isso que quero para o meu futuro. A minha vontade era agarrar essa menina pelos ombros, abaná-la até os neurónios fazerem conexão e começarem a funcionar de forma realista. Mas da mesma maneira que deixei os ausentes da sala grande e iluminada  sossegados nas suas lembranças, deixei Pollyanna ali no seu mundinho perfeito e alegre, por que assim determinou, mas completamente fora da realidade. Da realidade que quem sente na pele isso tudo.

Muito provavelmente eu não percebo nada de amor, é algo que se calhar a minha tradução da palavra ou do sentimento não encontre rima perfeita em lado algum. Mas aceitaria como acto de amor que alguém soubesse olhar nos meus olhos e soubesse ler que a minha vontade, depois de cumprir a minha longa vida, não é ser esticada pelos fios do sofrimento, dor e ausência.

Merecemos um fim tão digno como a palavra humanismo concebe.

Poderia dizer que tudo isto não passa de um conto, mas infelizmente é tudo quanto vivi nos últimos dois dias. Pura realidade. Uma que me esgota emocionalmente e que me revolta a alma.

Rakel

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