O Olmo Das Almas - Epílogo d'O Bardo




Não tendo senhor a quem dar contas, o tempo segue o seu rumo, ignorando as formas como o separamos em meses, dias ou minutos. Ele percorre o caminho das vidas sem atrasar o passo ou correndo contra nós. E assim, a vida de cada pessoa escorre entre alegrias e perdas em partes nem sempre justas, mas necessárias. Os campos recebem as sementes, geram novos rebentos que amadurecem e são colhidos; nascem crianças e deixam-nos aqueles que a morte escolheu como sacrifício da renovação. O mundo desfaz-se e refaz-se vezes sem conta.

Os caminhos do bardo foram aqueles que já conhecia muito bem; as cidades que evitava ficar mais de um par de noites e os campos onde encontrava abrigo, caça e o isolamento que desejava. Noites de festa em que a sua destreza de contar lendas, histórias de batalhas  e de amores impossíveis iam rendendo o suficiente para viver. Mas com o passar do tempo e pelas cidades e aldeias por onde passava, o bardo percebia que as mudanças não eram só das estações; havia no ar a inquietação própria de tempos de guerra.
Os boatos que corriam de boca em boca eram de que logo que as neves derretessem, os sons e cheiros seriam diferentes. Tentando antecipar-se de uma convocatória compulsória e obrigatória, o bardo fez-se passar desapercebido. Percorreu caminhos menos usados, dormiu mais vezes nos campos que nas estalagens e acabou, quase uma ano depois, perto da entrada Norte da vila onde vivia a camponesa que discutiu com ele na última festa das colheitas. A quinta pequena mas bem arranjada mostrava que o trabalho não era descurado e de uma rotina bem estudada.

Viu-a ao lado do poço, dentro de uma grande tina de água e roupa a lavar; descalça e com as saias subidas até perto do joelhos, pisava a roupa ensaboada; com as mãos na cintura e o olhar perdido no horizonte ela ia dançando entre espuma e respingos de água. Distraída em pensamentos que só ela saberia, por pouco não caiu sentada dentro da roupa a lavar. Riu-se de susto e descuido e ajeitou atrás da orelha uma mecha de cabelo que escapou-se de trança grossa; um gesto simples e sem as afectações de sedução que toda cortesã saberia tirar partido. Mas o público da camponesa não era mais do que um cão malhado e um gato cinzento, ambos dormindo na relva fresca e completamente alheios do trabalho da dona.

O bardo sentou-se a sombra de um olmo velho como os anos do mundo e ficou a ver como ela pisava e revirava a roupa com os pés, sem preocupações maiores. Depois de enxaguada toda a roupa, viu-a com o cesto encaixado na anca em direcção à corda presa entre dois pessegueiros; de toda roupa lavada e estendida como bandeiras, não se via uma única presença masculina. Provavelmente à isso devia-se a falta de discernimento e a maneira desabrida como tinha falado com ele no ano anterior. Qual homem gostaria de ter a sua beira uma mulher que diz tudo o quanto pensa? Mas ficou ali a ver como sacudia cada peça de roupa, como punha-se na ponta dos pés e pendurava-as, esticando-as depois para que ficassem sem rugas. Em cada três ou quatro peças de roupa, ela ajeitava a mecha rebelde atrás da orelha, tão rebelde quanto ela, uma camponesa opinosa e que não sabia quando calar.

Decidiu que já tinha perdido demasiado tempo a contemplar desse viver simples e decidiu meter-se no caminho Leste, contornando a quinta, em direcção ao bosque. Mal tinha dado meia dúzia de passos e ele viu-a de novo, com o cesto vazio encaixado na anca, a mecha de cabelo balançando livre e o olhar dela surpreendido. Quatro, cinco batidas de coração e nenhuma palavra foi dita, apenas o som do vento no velho olmo, a erva seca a restolhar e o cheiro de calor e sabão no ar. Tomou ele a iniciativa e um curto cumprimento de cabeça rebatido prontamente por ela. E foi tudo quanto disseram.

Nessa noite, o sono do bardo foi perturbado por lembranças de sangue, luta; de cheiro de pólvora queimada e de gritos de dor. Acordou com sensação de mau agouro; sentia latejar  a cabeça e uma amarga sensação de proximidade fazia-o sentir que a guerra ia apanhá-lo outra vez. Teria pernas para fugir disso? Olhou para a capa que vestia e desejou que fosse como a dos contos, que o tornasse invisível.

Três estações depois, numa aldeia pequena a Sul do país foi reconhecido por um dos antigos amigos de armas; e por muitas desculpas e recusas que tivesse feito, acabou com uma espada na mão e o comando de duas centenas de arqueiros. A batalha, que mais tarde ficou conhecida como A Batalha dos Afogados, fez-se em dia de copiosa chuva, de estrondosos relâmpagos e trovões. Durante os três dias anteriores a essa batalha, foram de chuva furiosa, de lama e desespero. Cansaço, fome, frio e a sensação de que a morte rondava cada um deles. Numa dessas noites frias e molhadas pelas chuvas, com o murmúrio dos feridos e moribundos, ele sonhou com a camponesa a lavar a roupa; de tornozelos na água e sabão, com a mecha de cabelo ao vento. Quando acordou, dizia para si que apenas sonhou isso para esquecer os horrores de matar ou morrer. Nada mais.

Dizem que a Batalha dos Afogados foi uma vitória para o país, mas muitos dos que faziam parte dos vencedores perderam também muito. Depois da guerra, era afinal tempo de recomeçar e foi assim que muitos voltaram às suas casas e aldeias e o bardo, sem tecto e sem destino, viu-se outra vez a percorrer caminhos e estações.

O tempo e o bardo caminharam juntos entre ventos e ravinas, bosques e searas de trigo louro; de vila em vila, de cidade em aldeia. Dois anos depois chega então à entrada Norte da vila para a festa das colheitas. Iria, desta vez, omitir a batalha horrenda de chuva, sangue e lama. Olhou para a quinta e viu-a ao abandono; não havia o cão, nem roupa estendida. A erva crescia como uma multidão selvagem, tomando tudo, escondendo o poço e a beirada das janelas da casa. Intrigado, entrou na aldeia, já com os preparativos para a noite de festa, e foi até a tenda do cervejeiro para uma caneca fresca e ouvir as conversas alheias.

Foi assim que soube que a dona da quinta à Norte, tinha morrido há dois anos; a guerra não matou só com lanças e espadas. Trouxe com ela as febres más que os soldados sobreviventes tinham com eles. Ela ainda durou duas semana, mas por fim, o corpo cedeu e ela morreu durante o sono. Nas horas que a lucidez sobrepunha-se ao delírio da febre, ela pediu que fosse enterrada ao pé do velho olmo. Disse que queria ficar perto de casa e do caminho da vila.

Nessa noite, o bardo à volta da fogueira contou a lenda de reis e princesas encantados, de dragões e santos guerreiros. Não cantou dessa vez baladas de louras donzelas nem de beijos apaixonados. No final e com as moedas no bolsa foi comer um naco de carne a maçãs assadas. Comeu mecanicamente, como de hábito, e o mais rapidamente possível, para não dar aso a conversas desnecessárias. Envolto na capa e com o alaúde às costas percorreu o caminho de saída da vila em direçção ao bosque a Leste.

Viu-se outra vez diante do velho olmo, e olhou para a apagada quinta. Imaginou como seria a lareira com fogo animado, a panela com o guisado a ferver e o cheiro do pão torrado. Imaginou a casa com o tom dourado das velas a iluminar e o cheiro da roupa, de sabão e sol, dobrada dentro da cesta. O cão e o gato enroscados a beira do lume e o andar de lá para cá dela, de pés ligeiros e incansáveis.
Sentou-se, apoiando as costas no velho tronco do olmo, e ficou ali a pensar que, de tantas mortes que já tinha visto, de quem usa a espada como forma de vida, a dela era a perda pior. A morte dos inocentes. Não a conhecia bem, não tinham trocado mais do que uma dúzia de frases, ríspidas e beligerantes, mas tinha visto o lado simples e inocente de vida dela.

Perturbado, sem sono e olhando por entre as folhas da velha árvore, lembrou que, algures nesse chão, ela estava a descansar. Não tinha palavras para dar-lhe, nem justificações das escolhas que tinha feito; apenas queria esquecer tudo; a vida, a guerra e o que ela tinha dito: "quando souberes quem és e o que queres, vem falar comigo, vivo na quinta na entrada a Norte da vila".

Sem palavras e com um aperto no peito incompreensível, pegou no alaúde e dedilhou uma canção à ela, como despedida; como uma resposta à uma questão impossível, à todas possibilidades que já não existem e por ele.

As estações foram e vieram vezes sem conta; com o tempo, pessoas nasceram e morreram. O mundo caminhou na sua senda normal de renascimento e reconstrução. Outras guerras se fizeram, outros tempos de paz perduraram.

Contam na cidade, que quando era apenas uma pequena vila, no lado Norte, havia em tempos idos um bardo que vinha todos os anos sentar-se a beira do velho olmo. Passava ali a noite e cantava uma balada de esperança perdida, de um sonho não concretizado; dizem também que, já muito velho, numa noite há muitos e muitos anos, deixou-se ali ficar. Contam que o velho olmo compadeceu-se do velho bardo e tomou-o nos braços e fê-lo dormir para sempre ali.
Também diz a lenda, que em noites de Verão pode-se ouvir a voz sumida do bardo a cantar uma canção que pede o calor de uma lareira e um lugar onde ficar. Dizem que é a lenda do velho Olmo das Almas.


Rakel.






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