O Olhar Da Gárgula





Dizia eu em conversa, que já fazia um bom tempo que não via um filme de terror de jeito. Um que não funcionasse na base dos clichés e das acções previsíveis dos personagens. Aí me perguntaram a razão de ter "gosto" em filmes de terror. Perguntaram-me também se já tinha visto os grandes mestres da 7ª arte, como Jean-Luc Godard e Truffaut e outros que foram categorizados como cineastas intelectualizados e que só gente com um Q.I de jeito sabe apreciar. Cinema para pensar, fazer as meninges coçarem-se de perguntas e fazer epifanias que mudarão o nosso mundo interior.

Em princípio, o que esta pessoa pretendia dizer era que já que vamos gastar o nosso precioso tempo em frente de uma tela, que fosse para o bem do nosso prestígio intelectual de visitar os mesmos e os de sempre imortalizados realizadores que configuraram um tipo de cinema que poucos entendiam. Eu sei que há um pouco de cinismo nesta minha descrição de conversa, mas percebi perfeitamente que a questão de distracção é algo realmente pessoal e intransmissível. E que ele queria dizer que uma pessoa adulta deve ter na carteira esse cartão intelectual de saber falar das grandes mentes. Assim de mansinho me chamou de tapada. Ao responder que sim, já tinha visto mas que não eram a minha "praia" fez aquele ar que a minha mãe fazia quando eu aparecia com uma blusa que foi teste de cores em Batik.

A questão seguinte que me foi colocada é a razão do género: terror, horror, sangue, almas penadas, casas assombradas e gente possuída. De perpetuar a ideia grotesca dos monstros que são uma alegoria dos nossos lados sombrios e das estórias de assustar meninos. Bom, tememos sempre aquilo que desconhecemos, que não sabemos explicar ou que pela sua aura até nos fascina. Pensei que deveria ser honesta na resposta, já que por muitos rodeios e palavras caras o resultado seria o mesmo. O melhor é sempre dizer as coisas directamente e de forma simples.

Os monstros das telas não me metem medo, o que realmente eu tenho receio são das pessoas que aparentemente são pacatas, lúcidas e até certinhas, mas que são podres até ao tutano. Nem preciso me esticar tanto, basta ver todos os perfis feitos por profilers (não os das séries de T.V) e que explicam que todo psicopata ou sociopata é geralmente a pessoa que mais passa desapercebida na multidão. Pacato, boas maneiras, inteligente até (e quem valoriza assim tanto o Q.I, ponha-se em guarda) muitas vezes tímido, não é um grande socializador e não tem ar de degolador, de arrancar tripas ou coleccionar de dedos dos pés. Nop, a vizinhança até acham-nos (até a descoberta da real face) pessoas de bem.

E na mente do psicopata ou sociopata, eles não fazem nada de mal ou são a personificação do mal. Tudo funciona numa base perfeitamente "normal" e de uma certa missão de vida. Nunca se auto intitulam de "monstros", mas sim de justiceiros ou a mão de deus. Essa gente mete-me medo a sério. Não consideram a existência de um lado negro em si, mas um fim a realizar que justificam os meios.
Infâncias difíceis, de abusos nas mãos de outros tantos  aparentemente normais, mas com uma imensa podridão interior, ou uma total negligência. Noutros casos, nem há uma razão em si para essa doença mental e impulso assassino. Mas nunca se enxergam como monstros, nem se auto intitulam como monstros.

Disse que sei perfeitamente que não vou dar de caras com um Drácula ou um zombie caindo aos bocados. Mas que tudo faz parte desse nosso ancestral fascínio pela luta entre a luz e escuridão; da redenção, de que nem sempre controlamos os acontecimentos e que mesmo assim sobrevivemos "apesar de tudo". É a mesma coisa que os nossos ancestrais cavernícolas faziam em volta da fogueira e contavam a estória do monstro que comia a Lua e ela voltava sempre para lutar novamente. Ou de como os espíritos gritavam ordens e a sua fúria em trovões e relâmpagos. E toda gente ouvia com o devido respeito mas temendo mais no dia seguinte que um predador os achassem apetitosos e virassem almoço do que a estória contada pelos mais velhos na noite anterior.

Mesmo nas mais horrendas alegorias, nas manifestações fantásticas da imaginação que colocam na tela, nos seres inventados para nos assustar e mexerem com o nosso medo, nada é mais assustador do que a real intenção de fazer mal por gosto ou missão. A intenção é realmente o motivador e denominador comum de quem escolhe fazer deliberadamente mal à alguém.  Sendo escolha ou impulso, tanto faz, mas deliberar taxativamente um caminho por si é no mínimo constrangedor.

A conversa depois descambou sobre música e a aporrinhação de géneros tidos e classificados como eruditos e clássicos de todos os tempos. De certo modo, ou até mesmo de propósito, a pessoa em questão queria me catequizar no caminho dos intelectualmente desenvolvidos e chamados de adultos coerentes. O tom de cinza chumbo do palavreado, que não tem paralelo com os livros do amarra e phode que foi moda, pesava como discurso de pai rígido nos seus conceitos mas "bom o suficiente" para me levar à bom caminho. E a parte mais gira da questão é que sou uns bons anos mais velha e já ouvi isso tudo há muito, tendo como resultado um zero retumbante.

Tenho a grata satisfação de conhecer gente com diferentes cabeças, modos de vida e gostos; mas este vai direitinho para o lugar do enfadonho/pedante/pretenso intelectualóide. Uma pena.

Ficou ele com a bola, deixei-o contente na razão inflexível dele, do modo arcaico de ver os monstros, as alegorias e a vida fascinante do intelectuais. Seja lá isso o que for.

Parece-me que, se um dia nos cruzássemos em Paris, ele estaria na fila (interminável e lenta) do Louvre  só para ver a Mona Lisa, aquele quadro pequenino de uma moça que sorri para a "foto" daquela maneira, não por enigma, mas porque lhe falta um dentinho da frente.  :)

Eu, por outro lado, estaria a caminho de Notre Dame para conseguir chegar lá em cima, e ver o que as gárgulas vêem há quase 700 anos, todas as mudanças de Paris. Viram reis e rainhas viverem e morrerem, uns pela doença outros pela mão do povo em revolução; viram Napoleão entrar triunfante, viram a obra de Eiffel a ser construída e as tropas alemãs a entrarem e a assentar arraiais. Viram depois a festa do fim da guerra... e quem sabe? Até poderiam me contar outras coisas que viram e ninguém sabe.

Em resumo, percebi que certamente cada um pode achar-se aquilo que lhe dá na gana, ver as coisas e o mundo pela sua óptica e pela formação que acham-se mais afeiçoados. Inteligência é uma questão muito sensível de pesar e avaliar; no entanto, a minha certamente acha melhor que os auto-proclamados fiquem em paz com as suas teorias e perfis concebidos para apresentar quando necessário, como um cartão de visita. E não há argumento que dê espaço para uma alternativa qualquer de uma outra visão. Há só essa e ponto final.

E entre esta conversa, e coincidentemente, (e quem sabe são sinais do universo) um assunto que eu li, deixo pacificamente e sem remorsos que sejam felizes nesse mundo tão bem arquitectado.

Mas cuidado com as insinuações... não tomem como garantido uma equação aparentemente simples.

Fiquem lá com a bola e ide em paz.


Rakel.



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