Senhor Professor





A contínua entrou na sala  A-5 do 11º ano com um comunicado; a direcção do Liceu tinha tomado uma decisão que visava modificar os hábitos dos alunos. Era o ano de 1981, The Wall bombava e eu era uma aluna recém chegada à Portugal. Vi o meu professor de português agarrar a folha com uma mão e na outra segurava o cachimbo aceso e em pleno funcionamento. Leu em voz pausada e séria as linhas que diziam que daquele dia em diante os alunos só poderiam fumar nos pátios interiores ímpar e par. Que o fumar nos corredores e salas de aula estavam (e aí deu a sua muito característica risada velada) excluídos, sendo as sanções as correspondentes às de falta grave.

A contínua olhava para ele depois de acabada a leitura do documento e enquanto ele olhava para o papel com uma certa abstracção. Encaixou o cachimbo nos dentes, pegou a caneta e rubricou a folha como correspondia fazer. Quando entregou a folha, deitou uma baforada cheirando a fumo e chocolate, para mim bom tabaco de cachimbo sempre cheirou a chocolate ou algum doce. O silêncio da sala era tal que até dava para ouvir os grilos. E mesmo assim, depois do comunicado, as aulas a falar das figuras de estilo de Eça, de Herculano e a as divagações do viajante Garrett continuaram a ser perfumadas pelo cachimbo do Professor Doutor António José Tavares. Ele e mais uns tantos da época, eram realmente pessoas que mereciam o título de Prof. Dr, por terem defendido tese; não era licenciados, ou com mestrados.

Foi ele, depois do meu primeiro teste vinda da terra brasilis, que deu-se conta da minha incapacidade de desenvolver temas, pensamentos ou opiniões. Três linhas chegavam e eram já muito. No final da aula, pediu-me para ficar e falarmos. Foi quando me pediu que todos os dias, mas mesmo todos os dias, escrevesse alguma coisa numa folha de dossié. E eu ali mesmo disse-lhe que era incapaz de escrever todos os dias um assunto, que ninguém tem assim sempre assunto do que falar ou escrever. Mas ele foi irredutível e disse que, nem que fosse sobre um assunto de jornal, uma frase que engraçada, o que fosse. Mas que escrevesse.

Comecei com quatro linhas mal paridas; o tema foi uma notícia da televisão. No dia seguinte apresentei a folha antes de ir para o meu lugar e ele depois da chamada começou a ler. Rubricou e colocou de lado para dar inicio à aula. No fim, entregou-me a folha e disse para continuar. E assim, durante meses essa foi a minha rotina nas aulas dele; nunca corrigiu possíveis erros, nunca contradisse alguma opinião, nem questionou a minha forma de escrever. Com o passar do tempo, as folhas iam ficando com muito mais do que quatro linhas, muitas vezes apanhava-o a rir-se, daquele jeito dele de rir para dentro, das coisas que eu lá colocava. Noutras ficava sério, talvez pelos assuntos mais pessoais de adolescente em guerra parental. Até que chegou um dia que ele me disse que já estava bom, que já não era preciso entregar-lhe mais "escritos". Que eu lesse tudo o que pudesse agarrar e que continuasse a escrever tanto quanto pudesse.

Devo-lhe isso, a capacidade de escrever e de colocar para fora pensamentos e opiniões; até mesmo a capacidade de análise antes de escrever, de saber a responsabilidade que é colocar por palavras os nossos pensamentos e anseios.

Hoje fiquei a saber pela Belona, minha amiga e antiga aluna dele também, que ele faleceu na semana passada vítima de acidente de viação. A notícia aparece em jornal regional como "a vítima era um idoso de 74 anos , ex professor de português e que era conhecido por fumar cachimbo". Até por ironia da vida, semana passada andava eu a fazer arrumações quando dei de caras com algumas dessas folhas rubricadas por ele, com aqueles assuntos tão pertinentes que me fizeram escrever. Mostrei ao meu filho essas folhas, explicando o quão importante ele tinha sido para mim na capacidade de escrever, de desenvolver essa agora, mania minha. Acabei por recordar as pequenas discussões que tinha com ele quando, para desenjoar, ele fumava More e deitava mais de meio cigarro fora. Ou quando ele descobriu que eu era prima de um tipo de inimizade dele, sendo ele garrettista e o meu primo (também Prof.Dr.) mas herculanista. E parece que o pomo da discórdia era a casa do Alexandre Herculano e a administração da mesma. Pedi para não ser incluída na briga e que eles, senhores sábios e doutos que se entendessem.

Ironicamente, na mesma semana que mostrava esses papeis e contava isso ao meu filho, esse professor, e no meu caso um motivador, faleceu. Muito pouco para quem merecia mais; ou se calhar, é o tamanho do nosso reconhecimento e do afecto que enxerga-lhe a grandeza. Não sei se o Liceu Sá da Bandeira lembrou-se de colocar a bandeira a meia haste. Não sei se mais antigos alunos foram prestar-lhe a última homenagem. Só sei que as pessoas que fazem parte do que hoje sou...estão indo embora e deixando um pouco de solidão no lugar.

Ele, não posso dizer que foi um "Capitain, my capitain", pois não era homem de levantar a voz e mesmo assim impunha respeito numa sala conturbada com abestados de todas as qualidades. Mas foi uma grata influência.

Adeus, senhor professor Tavares... e obrigada. De coração.


Rakel.


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