O Senhor do Castelo





As muralhas era visíveis há quilómetros de distância, imponente e aparentemente inexpugnável o castelo surgia no horizonte encrustado no alto do monte coberto de árvores seculares e caminhos íngremes e difíceis. Um palácio oferece beleza, requinte e arte. Um castelo é um símbolo de resistência, de força e luta.

Caminhando em passo regular e sem pressas, ela subiu o caminho ornado por silvas e roseiras bravas, de flores pequenas e perfumadas. O rosmaninho e as papoilas balançavam levemente com a brisa de uma manhã ensolarada e de céu azul. Ela sabia que parte da história do castelo, das batalhas, das decisões difíceis e de todos os esforços de quem lá viveu e defendeu as suas paredes. Vida e morte no círculo natural da vida, em recomeços passados de pais para filhos, de comandantes à subordinados e todos os destinos possíveis.

Durante gerações, o castelo esteve nas mãos dos herdeiros, que negligentemente esqueceram dessas batalhas, dos nascimentos e mortes, de alianças e contendas, das traições e vitórias que fazia parte de cada pedra, arcada ou escada do castelo. Decidiram, já demasiado tarde, passar o "imóvel" para as mãos do Estado. Já não era visto por eles, os herdeiros, como o castelo de família, mas um imóvel que necessitava de todos os arranjos que gerações inteiras esqueceram ou adiaram.

Ela sabia que havia um plano de restauração, que levaria anos a realizar e a devolver a beleza, mesmo que rude, desse impressionante legado. Por isso, antes que as obras começassem, antes que o entulho e o barulho de máquinas chegassem, ela iria explorá-lo. O portão enorme estava aberto a espera dos engenheiros e historiadores que viriam, mais cedo ou mais tarde, começar a fazer o levantamento. Conhecia o guarda que ficava a porta do castelo, uma pessoa que sempre conheceu e viveu no mesmo bairro que ela e que permitiu que fosse visitar as entranhas esquecidas e degradadas.

Atravessou pelo pátio central e passou pela antiga casa de armas, as cavalariças,  a pequena capela com o telhado decrépito e ruinoso e continuou até chegar à porta principal. Três degraus de pedra davam o tempo de tomar o fôlego e apurar o olhar em tudo quanto pudesse ver e entender. Deu-se conta, ao passar pela ombreira, da largura descomunal da parede de pedra. Lá dentro, mais escuro do que o dia ensolarado, sentiu a primeira baforada de frio. A enorme lareira, de bocarra aberta e sem lume a crescer, apenas servia de caminho para o ar da porta aberta, sugando o calor da rua e deitando pela chaminé desconjuntada.

Na sala quase vazia, delapidada  pelos infortúnios dos sucessivos herdeiros, apenas viam-se retratos dos heróis, dos antepassados e uma ou outra tapeçaria já um pouco desfiada e de cor carcomida. Numa delas, uma cena de caça mostrava um cavaleiro a espetar uma seta de besta no pescoço de uma corsa a fugir, os cães a rodeá-la. Uma cena de matança que não condizia com a natureza dela, um coração mole com animais.

Olhou para cima e viu o enorme candelabro, que outrora albergava mais de vintena velas, sustentado por uma corrente grossa , quase tocando o tecto alto, de traves e vigas de madeira escurecida de fumos antigos. E teias de aranha, imensas teias de aranhas. Um silêncio pesado cobria a sala, apenas interrompido pelo som dos passos vagarosos dela, quase uma profanação de um acto sagrado de permanecer mudo para tudo e todos. Parecia até que os retratos olhavam para ela com alguma intolerância, como se ela tivesse interrompido um acto solene.

Do lado direito da sala principal, dois corredores levavam aos espaços que ela já conhecia: um era o que levava à cozinha enorme , a despensa e as escada que davam para a adega, que antes disso havia sido o calabouço. O outro dava para duas salas, uma onde reuniam-se para discutir estratégias e alianças e a outra a sala onde uma antiga dama tinha feito dela a sala de costura.  Do lado esquerdo, havia uma arcada e o começo da escada para o primeiro piso. Era esse o objectivo principal dessa visita ao castelo.



Subindo a escada estreita e íngreme, apoiou a mão na parede de pedra e sentiu a humidade gelada dela chegar-lhe aos ossos; puxou as mangas do casaco de maneira que cobrissem as mãos e isolasse do frio e que desse alguma estabilidade para continuar a subir. Um corredor estreito, com portas dos dois lados; e se não fosse por algumas delas estarem abertas, mostrando o vazio e janelas abertas, seria preciso uma lanterna para continuar. Do lado direito sabia que a terceira porta era aquela que queria visitar. Contavam que aquela porta era o quarto principal do senhor do castelo. De geração em geração, cada ocupante tratava de embelezar ou melhorar esse quarto.

Que tapeçarias e arcas lavradas com delicadeza de roupas e linhos ornavam o espaço, juntamente com a lareira e uma janela, a primeira a levar, como chamavam naquele tempo, folhas de vidro. Conta-se que foi um dos senhores, apaixonado pela sua noiva que preparou o quarto assim. Quase quinhentos anos atrás, ele preocupou-se em tornar mais cómodo o espaço para ela, que mesmo sendo uma união arranjada para fortalecer alianças e riquezas, no coração dele havia mais do que dever. Conta-se também, que pouco mais tarde dessa união a traição levou-o a fechar o quarto de tal maneira que ninguém conseguiu abri-lo depois. Fechou a mulher num convento, depois da anulação dos votos e fechou o coração como fechou a porta. Amaldiçoou o quarto e todas as esperanças que tinha construído nele. Nenhum senhor do castelo voltou a usa-lo.

Diz a lenda, que se bater três vezes na porta e ouvir uma batida em resposta do lado de dentro, é que o espírito desse senhor já conseguiu perdoar e perdoar-se. E dizem também que a porta abriria então sem preciso chave ou esforço, pois o espírito atormentado, solitário e nas sombras finalmente enxergaria a luz divina.

Ela parou em frente dessa porta lendária, fechada por desdita e traição, respirou fundo e bateu levemente três vezes, como quem pede licença para entrar. Pareceu-lhe ouvir passos no interior, e para falar a verdade, sentiu o coração acelerado pela expectativa. Seria ela a quebrar o encanto? Seria ela a primeira a ver o quarto parado no tempo?

Ela teve a certeza de ouvir uma mão encostar na madeira da porta, como quem apoia o peso do corpo contra ela. Ficou de fôlego preso ao saber que lá, do lado de dentro, "alguém" tentava decidir se daria ou não a batida de resposta. E ficou ali, parada em frente de todas as possibilidades e futuros possíveis, do dela e do dele. A dela a da descoberta, a dele a redenção. E a manhã passou a ser tarde, e a tarde deu lugar a noite. No começo da noite, o guarda do portão veio busca-la, já estranhando a demora e imaginando-a presa em algum buraco nos torreões.

Ela foi embora ainda com a sensação no coração de que "ele", o senhor do castelo, ficou ali parado do lado de dentro, com a mão na porta, decidindo o que fazer. Quase ao chegar a casa, pensou que para os espíritos o tempo não conta-se da mesma forma que os vivos fazem, para eles toda eternidade, para nós um dia perdido já conta como inutilidade.  Assim, prometeu-se voltar no dia seguinte e tentar outra vez. O dia seguinte desdobrou-se numa semana, sete dias, sete vezes a bater três vezes e a sentir a mão do lado de dentro do quarto a apoiar na porta e a sensação de tormento e indecisão dele.

No sétimo dia, olhando para a porta ainda fechada e sem resposta, ela percebeu que, já não importava mais o que estava do lado de dentro, de como era o quarto. Sabia que tudo o que lá estava, o tempo já teria apagado a beleza, deixado marcas e desfeito em bocados. O que ela realmente queria era colocar um fim nessa maldição, que essa alma atormentada e solitária encontrasse paz. Do pouco que ela conhecia sobre o amor, parecia-lhe mais um problema de ego ferido do que de afecto profundo que foi traído. Talvez o golpe tenha sido pior pela exposição de que o senhor do castelo não era senhor absoluto de tudo, e sim, ele precisava entender isso.

Encostou a testa na porta e sussurrou como uma despedida :

"Amanhã já não estarei aqui. Estes dias em que esta porta serviu de limite senti-te aí desse lado, ou pelo menos, acho que te senti aí, e esperei que decidisses abri-la. Logo virão outras pessoas para reformar o castelo, devolvendo a beleza anterior. Tudo será diferente...bem, não terei outra razão para voltar à este quarto. Bom, é só isso. Adeus".

Na semana seguinte começariam as obras de restauro: engenheiros, empreiteiros e trabalhadores encheriam aquelas paredes com sons diferentes das contendas, festas e daquele silêncio solene e pesado. Talvez conseguissem arrombar finalmente a porta, talvez assim o senhor do castelo veria-se resolvido a assombrar os corredores e a dar uma nova fama ao castelo, ou que ele se vá embora e definitivamente descansar a alma no outro lado.

Mas para ela, que razão terá então para visitar aquela terceira porta do lado direito do corredor do primeiro piso do castelo?




Rakel.

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