Lua Que Me Segue



Quando somos pequenos e a nossa inocência ainda está intocada, conseguimos ver o  mundo com olhos diferentes do modo que os mais crescidos enxergam; o caminho que nos leva à idade adulta é duro, exigente e no meio dos sorrisos, e não são poucos, apanhamos umas bordoadas. Os miúdos ainda não passaram pelos dissabores, indiferenças, nem por desilusões que vão delapidando a nossa inocência e vivem num mundo simples e sincero que elas concebem e cheio de possibilidades onde cabe tudo:do real ao fantástico. Eu posso ser astrounauta e ou então fada.

Quando eu era pequena, lá no banco de trás do carro do meu pai, olhava pela janela e via o céu e a Lua brilhante na noite escura; eu pensava que a Lua, nem sei bem por quê, me seguia. Mas era uma boa sensação, uma que me tornava especial. Achava que ela me tinha escolhido como uma afilhada, alguém que de noite faria que os sonhos fossem tranquilos, de respirar fácil e que nada me assustaria. Ainda criança, conversando com outra menina, descobri que também ela achava que a Lua a seguia, que também velava por ela e que vigiava os seus sonhos.
Isto de ter pesadelos em criança é caso sério... e de não comer a sopa toda e ter o famigerado Homem-do-saco a espera de me levar embora e justamente por causa disso os meus sonhos não eram lá muito tranquilos.

E de cada pesadelo horrível, cheio de gritos e suores e cada noite puxando o ar que entrava mal e porcamente nos pulmões, lá vinha o sentimento de culpa pela sopa não tinha comido, as campainhas que tinha tocado e fugido e aquelas 3 mangas que tinha roubado do quintal do vizinho. E a Lua nessas noites, devia ter-se zangado comigo e deixava-me ali a amargar aquela sensação de castigo.

Com a chegada das primeiras letras e com a facilidade que ia descobrindo significados, autores e os diferentes géneros fui apanhada novamente na mesma sensação que a Lua me deu na infância: "este escritor escreveu isso para mim" de tão bem encaixadas as palavras descreviam as sensações de uma adolescente ainda tentando perceber um mundo que me via criança quando queria fazer algo diferente, mas ao mesmo tempo uma adulta quando exigiam que assumisse responsabilidades que eu nem percebia o motivo.
Junto com os livros vieram as músicas e me via outra vez metida na mesma sensação: "essa música foi feita para mim".  Nessa altura eu já sabia que a Lua não me seguia, o Homem-do-saco era como o Coelho da Páscoa e que a minha asma era uma resposta que o meu corpo encontrava para me dizer que eu...não estava bem como estava. Lá se foi um bocado da minha inocência.

Com a adolescência ainda fresca, sabendo que a Lua não era a minha guardiã e que o mundo era grande demais... queria tudo e rejeitava outro tanto: faz parte dessa fase do crescimento querer agarrar tudo, querer ser tudo e desejar tudo, mas ao nosso modo. Do vinil girando saíam melodias e versos que calhavam tão bem nos meus momentos apaixonados como nos revoltados; quando o meu inglês ainda era curtinho e não percebia as letras direito e só sentia o que a melodia me indicava;  quando os discos traziam as letras com eles, o dicionário mostrava-me significados e percebia  os duplos sentidos. A vida é um duplo sentido, e cada qual faz de seu o significado que mais lhe calha sentir: a Lua pode me seguir ou é só uma ilusão.

Poderia dizer que a minha inocência foi substituída por completo pelo cinismo e sarcasmo; poderia dizer que na vida de uma mulher adulta  já não cabe a ilusão de que "ele escreveu isto para mim". Fica sempre um restinho de inocência escondido numa parte qualquer da alma que de vez em quando dá um assobio. Que vê numa frase um chamamento, que vê numa música uma coincidência ou que, mesmo no duplo sentido da palavra, prefere pensar que sou eu que ilumino uma noite escura e que sou musa de palavras tão exactas e diferentes neste mundo tão repetitivo e cheio de hábitos frios.

Hoje, enquanto a maturidade ainda não feneceu por completo, já me custa mandar às urtigas o cuidado e a tomar iniciativas. O cinismo ganhou mais uns centímetros e não percebe já bem o deslumbramento renovável nas palavras tão facilmente e negligentemente usadas. Paga-se um preço demasiado alto quando queremos entender só um sentido das palavras. E calei as minhas.

Mas...

...ainda há noites em que me pego a olhar para a Lua, converso mentalmente com ela e a pensar que ela olha para mim e que entende cada palavra que lhe digo; e que quando a noite tranquila e escura começa a dar lugar aos primeiros brilhos do Sol e aquele corvo que acorda e sobrevoa a minha varanda corvejando uma saudação ao fogo solar...é um sinal de que esse mensageiro me diz que ainda existo na memória do poeta.
Quando a morna tarde desfaz-se no horizonte, e que quando o poeta escreve, já sem dedos entorpecidos, continua a dar-me a  a mesma sensação da "Lua que me segue". O problema é que a pouca inocência que me sobra, a pouca ilusão que existe, não quero perde-las. E há um lado meu que, mesmo sabendo o quão impossível será, ainda quer que a Lua seja a minha guardiã e que o mensageiro de asas negras nunca se esqueça de mim e venha mostrar-me o começo do dia... e de todas as possibilidades.

O meu silêncio, embora longo, é apenas expectante.


Rakel.


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