Fenecer






 Depois de ter visto um capítulo de uma série policial e de ter ouvido as palavras do assassino em série desse episódio , deu-me no que pensar. No capítulo em questão, ele raptava mulheres com a vida centrada em um objectivo que, para elas, era o impulso de viver. Uma delas era a criança tão desejada acabada de nascer; outra era a sua inabalável fé em deus; a última era o grande amor que tinha pelo futuro marido. O criminoso em questão achava que estas mulheres não tinham mais nada além desse único e poderoso objectivo de vida e que sem isso...teriam razão para viver?

Mantinha-as fechadas num quarto, sem luz natural, uma casa de banho e uma cama com portas e janelas barricadas. Um cubículo onde só cabiam cada uma delas e essa força ou impulso de vida. Não as violou, nem espancou ou drogou,  dizer apenas é mau, mas é a palavra certa nesse caso: apenas privo-as de liberdade e afastou-as das suas motivações. Deixou-as entregues à elas mesmas. A parte mais curiosa, se é que posso chamar assim, é que quanto mais o tempo passava... elas iam perdendo a fé de poder voltar à vida que tinham antes, deixavam-se vegetar na cama.
Dizia ele que só as emparedava nessa fase, quando toda fé era abandonada e quando não sentiam que a própria vida tinha valor sem mesmo as suas motivações ou grandes objectivos na vida: aquilo que nos faz levantar todas as manhãs da cama. Afirmava mesmo que, antes de empareda-las, arrancava a porta do lugar, arrancava a única janela e elas poderiam fugir normalmente, se elas quisessem, ele não impediria, mas nenhuma delas tentou sequer fazer isso. Elas nem acreditavam que  valiam mais do que um propósito, que não havendo retorno, quando o tempo fazia esquecer ou desistir, só ficava uma casca imóvel. Cinco mulheres em 5 cidades diferentes e todas elas tiveram uma porta aberta para voltar e não quiseram, não tiveram forças.

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Muitas vezes penso nessa faceta fascinante que todos temos mais ou menos: apostar todas as fichas do jogo num único propósito ou objectivo. Dirão talvez que uma criança ou um grande amor (o que muitas vezes se traduz por sentir-se amado), um bom emprego e estabilidade financeira sejam bons motivos para apostar. Até mesmo na espiritualidade e na fé total no criador. Não desvalorizo nenhuma delas; são todos eles pontos válidos para investirmos nossas forças e capacidades. Mas o que eu questiono é quando a nossa vida é só isso e deixamos de dar-nos a devida importância; quando deixamos de dar importância da consciência do nosso eu, única e importante. Ou quanto depositamos tanto fora de nós, no retorno dos nossos esforços para sermos amados e premiados ou epítome do sucesso que esquecemos se somos ou estamos bem; de ficarmos dependentes de algo que pensamos que é a razão da nossa vida, sem a qual não podemos viver.

Eu não tenho e não conheço a resposta mágica, mas percebi há algum tempo que aquilo que consideramos o nosso propósito na vida, muitas vezes é a cenoura que nunca alcançamos. Que nem sempre essa busca cega e incessante dará a recompensa desejada. E quando percebemos da luta sem glória que foi anos e anos a investir, sem chegar lá, o mais correcto seria levantar a cabeça, aceitar que fizemos o melhor que pudemos e que se não foi o que pensamos que seria, pelo menos tentou-se. E é começar a fazer de nós mesmos, mais do que um burro a correr atrás da cenoura. Com um mundo conturbado e com o poder nas mãos de desequilibrados mentais, viver honestamente e entender que felicidade são momentos que acontecem todos os dias, talvez houvessem menos pessoas a vegetar em vez de viver. Parece cliché, mas é hora de viver o momento, a gratificação imediata e simples.

A associação que fiz desta reflexão entre capítulo de série e post levou-me à este tema : Soulsick. Talvez pelo facto de que nos fim das contas, somos macacos a tentar ficar direitos em cima das nossas duas pernas no palco da vida, mesmo quando acreditamos naquele que apenas é real aonde não está e do medo que temos daquele que nunca dorme.

Somos primitivos em tantos pontos, com uma mente capacitada mas viciada sempre no mesmo enredo e jogo. E cometendo os mesmos erros vezes sem conta.
Ah... já agora, no episódio da série policial, conseguiram encontrar uma das mulheres vivas; a única que tinha espírito combativo e que acreditava na força dela mesma. Mesmo contra todas as hipóteses. Dá que pensar...


Rakel.



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