É Um Post De Gaja A Falar De Afectividade e Animais




Uma das melhores desculpas para qualquer tipo de enguiço entre relações é a trilogia, "não tenho tempo", "não tenho paciência" e "a minha vida já é complicada, não me apetece adicionar mais complicações". Muitos dirão que são respostas válidas e com uma certa justeza, embora pareça existir uma certa falta de vontade de aceitar desafios ou uma vulnerabilidade encapuçada em distância.

O xis da questão é o facto de que eu meço (admito) a capacidade afectiva das pessoas com a maneira que se dão com animais. Não falo do horror descabido das osgas ou da petulante aranha no cantinho do tecto da sala. Vejo a forma como as pessoas relacionam-se com os animais e a forma como as colocam ou não nas suas vidas.

Evidentemente sou suspeita no assunto, já que os animais são, digamos assim, uma componente forte da minha afectividade. Mas gosto de observar as reacções das pessoas com os animais e como o ter ou não um deles na suas vidas revela bastante sobre elas.

Percebo que para muitas pessoas, o facto de ter um bicho em casa seja sinónimo de bagunça efectiva, da desordem do espaço e do descontrole de comportamento que invade não só o espaço como também  leva à desordem emocional. Aquela ambivalência de querer ter um animal mas ao mesmo tempo horror que deixe de ter a casa em estilo "foto para revista de decoração". Animal, por muito educado que seja, dá trabalho e não percebe o valor dos objectos (e fico a pensar até que ponto tem razão) nem do relvado ou do canteiro das petúnias. Cava, escala, esgatanha, rói, invade e suja. É um animal e ponto. Tem a sua natureza bastante vincada, faz parte dele ser assim, Desde o gato que faz um buraco no forro do sofá (e graças aos céus o meu é mesmo rente ao chão) e faz dentro dele um verdadeiro condomínio com várias entradas e saídas para o seu bel prazer.



Tem aquele sapato apetitoso, e tanto faz ter custado 3 dígitos à esquerda da vírgula, que sejam estrangeiros ou o raio que seja, mastigam-se bem. Adoram aquele bebedouro grande chamado sanita e da comida que os donos estão a comer. Dão em ir ao lixo e acabar de rapar os copos de iogurte e na falta do que há para morder vão dar uma mastigada naquelas coisas coloridas e que de vez em quando os donos põe chama na ponta e chamam de velas. Fazem asneiras, bagunçam a nossa vida prática e emocional, mas é assim mesmo. É roupa com pêlos, é disputa de espaço para o sofá, é sesta compartilhada com eles e mais uma boca a dar de comer. É mesmo ter outra pessoa em casa, um pouco diferente de nós, mas com as mesmas necessidades.



Percebo então o facto das pessoas que querem e preferem viver nesse ordenamento de espaço na vida: tudo está sob um controle exacto, nada interfere com a rotina e não há, salvo uma torneira que se estraga ou uma lâmpada que funde, grandes dramas no ordenamento. Quando fecha a porta e sai de casa para trabalhar sabe que quando voltar vai encontrar tudo na mesma ordem perfeitamente deixada e que nada mudou. Há pessoas que precisam desse controle ordenado, dessa "posse" de poder calculado e organizado. De que sendo assim, despende o mínimo de si, do seu momento de paz e do barulho dos "grilos" urbanos que, não são maiores do que o passar dum carro na rua ou o zumbido do frigorífico. Dai percebem-se as discussões do tampo de sanita levantado ou das migalhas deixadas no chão da sala, normal na vida partilhada com outra pessoa que não é a nossa cópia. Percebo isso, percebo também a repulsa de ter pêlos no sofá, revistas espalhadas, aquela recepção calorosa e barulhenta de caudas a abanar, pulos, ganidos e lambidelas com fartura. É muita efusão e muita demonstração em quem tem dificuldade ou até desprezo pelas demonstrações de afecto. Até tem dificuldade em aceitar esse afecto explosivo e também a realidade que há que retribuir esse afecto.



Não será descabida essa nossa relação com os animais e o facto da nossa personalidade estar ligada de uma forma bastante forte. Há hospitais e lares de idosos que levam animais, no caso cães ou gatos para que os internados tenham uma parcela de afecto e de melhora de qualidade de vida. Usam golfinhos e cavalos para ajudar pessoas com problemas físicos e mentais a interagir com o mundo e a perceber o afecto e o lado táctil do mundo. Crianças com autismo (uma incapacidade de interagir e comunicar com o mundo) conseguem florescer com ajuda de animais. São guias e ajuda e conforto afectivo  para invisuais. epilépticos ou com algum tipo de paraplegia.

Então, percebendo isso tudo, é fácil também perceber que quando as pessoas tem reacções rígidas com animais, ao ponto de enxotá-las e dizer que "não tenho vida para ter um animal" diz muito mais pela personalidade delas, do que a exigência da vida profissional e pessoal delas. É o facto de serem coxos emocionais e de não saber lidar com os imprevistos da vida. E quando a pessoa é mesmo desordenada emocionalmente e moralmente, aí escolhe ser um canalha e maltratar os animais que na sua essência tem o poder de nos ajudar mais do que nós à eles. Os animais não ligam ponta de corno se estamos bem ou mal vestidos, se a barba está feita ou se o nosso cabelo está bonito ou se a camisola combina com os sapatos. Pronto, vão ligar se os sapatos são bons para roer. Estão-se nas tintas se somos de esquerda ou direita, se vestimos camisola vermelha, verde ou azul em dias de jogo, mas percebem perfeitamente quando estamos tristes, irritados ou tranquilos. E oferecem não só a inestimável companhia, como também o afecto desprendido e desinteressado. Estão ali connosco, ouvem-nos e acompanham-nos. Podem não perceber as palavras mas percebem os nossos estados de espírito e tanto nos deixam afagar a pelagem numa reconfortante terapia, como sabem dar espaço ao nosso mau humor e ficam expectantes do momento certo de chegar perto e fazer-nos companhia e ouvir-nos.



Por cada pessoa que manifesta a sua solidão como algo que pesa na vida e que aconselho vivamente resgatar um animal do canil, gatil ou da rua, noventa por cento delas reagem com um não categórico. Quer dizer, está em casa a maior pare do tempo disponível fora do trabalho, com pouca vida social e diz "não ter vida" ou paciência para ter um animal de companhia. Dizem que ter um animal é uma prisão, que condiciona a vida delas, que no entanto é vazia de justamente algo afectivo e emocional. Nem ao peixinho de aquário são receptivos, já que a resposta invariável é que "ele morre logo".
Alvissaras, alvissaras!!!! descobriram a mortalidade como factor incontornável da vida. Faz parte.

Será que no fundo... não tem medo do facto que outra pessoa entrando na vida delas, na casa delas vai tirar esse poder de controle e que não está preparado para isso? Que dar esse afecto de gostar da pessoa corre sempre o risco de ficar sem ela, e por isso, mais vale não ter nada e assim evitar sofrimento? É uma fragilidade disfarçada de de independência e de impossibilidade.

Enquanto escrevo este post, olho para o chão da sala e vejo que a minha pestinha mais nova despejou o cesto dos brinquedos pelo chão procurando o brinquedo certo. No entanto o que realmente tem sido o brinquedo do dia é a bolinha de meia que ela gamou da gaveta das meias do meu filho. O gato mais velho olha com aquele olhar cheio de condescendência a vivacidade exuberante da louquinha e continua a dormir nas suas normais 20 horas de sono. Eu sei que nunca vou ter a casa em estilo museu, nem que a minha roupa vai estar sem vestígio de pêlos. Eu sei que podem ficar doentes, que exigem afecto, mas retribuem na mesma medida. É facto que vou sofrer e chorar baba e ranho no dia que um deles me deixar. Mas vale a pena, sempre vale.

No entanto, quando as pessoas reclamam das suas relações com outras, da falta de compreensão e afecto, não será também um reflexo dessa máxima do não ter paciência ou vida para isso, e que de uma maneira velada e inconsciente, seja mais fácil lidar com uma vida muralhada em um museu ordenado e que controla ao pormenor? É caso para levar para casa e pensar...


Apareçam

Rakel.

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