A Alquimia Mais Antiga Do Mundo





Assim numa pesquisa rápida e muito pequena, pude constatar que no que toca a alimentação, as diferenças que existem não são assim tão abismais. Vi que o Cozido à Portuguesa, esse prato enfarta panças mas delicioso, tem primos em todos os lados do mundo. Do Ocidente ao Oriente e passando abaixo da linha do Equador, pude perceber que há sempre uma versão regional desse prato tão nosso familiar. É verdade que de todas as versões que vi, a mais perto é a francesa, mas ganhamos avanço na questão de enchidos, arroz e grão. No resto as variantes dos pratos "primos" são mais bem comportados e muitos deles aparecendo com uma versão mais vegetal do que com carne. É tudo uma questão da natureza do local, dos usos e costumes.

O pão, esse alimento básico da humanidade, aparece em formatos e receitas que dependem das latitudes e do que há a mão.

Mas a verdade é que cozinhar é praticamente um exercício de alquimia: aquele desassossego de não saber ao certo se estamos no bom caminho, o colocar todas as nossas esperanças naquilo que estamos a aventurar-nos a cozinhar e que sai fora do nosso natural rol, e aquela sensação de vitória quando conseguimos a transformação desejada.

Admito que grande parte das minhas experiências gastronómicas tem tido dois valores relevantes: um é o facto que os preços dos produtos alimentares ou estão muito altos ou o meu bracinho não alcança; o segundo tem a ver com um certo cansaço do rol e alguma preguiça invernal. O primeiro é uma razão de peso, a gente (pelo menos eu sim) olho para aquele desgraçado do galináceo que nem teve tempo de chegar a vida adulta embalado num saquinho e com um preço que não se justifica. É vero, podem ter subido o salário mínimo, mas no meio de tantas subidas de impostos e demais coisitas (luz, água, combustíveis e por aí vai) se não ficamos na mesma, acho que ainda ficamos em pior situação.

A parte da preguiça invernal   tem mais reflexo no dia farrusco e chuvoso, os pés quentes e a falta de pão e outras coisas que precisamos para pelo menos fazer 3 dignas refeições por dias. Eu disse com dignidade, não da realeza.

Buscando soluções económicas, que no meu caso é praticamente o adjectivo principal nas minhas frases e modo de vida, vou buscar em qualquer quadrante do mundo um solução rápida, eficaz e que seja saborosa. Sem dúvida os gostos não se discutem, mas gosto de coisas que façam as minhas papilas gustativas gingarem na boca. Temperos e mais umas misturas de ingredientes que nunca antes tinha pensado compensam e consolam sobejamente o buraco da fome.

Então, quando uma pessoa decide-se a viver e fazer da vida um constante laboratório de soluções alquímicas, o desenrascanço torna-se palavra de ordem e pedra base.

Novos sabores, novos pratos e duas cobaias (que eu não sou louca de experimentar tudo o que faço, senão nem passaria pelas portas) e muita adaptação. Domingo, dia mundial da preguiça, pantufa e sofá e... o pão acabou-se. Desta forma singela de problema e quase entrando na base da ameaça de mandar uma das cobaias à rua, mesmo com todo vento e chuva, resolvi experimentar fazer um dos pães mais emblemáticos da cozinha indiana, o Naan. Digamos que foi uma experiência deveras interessante e que se mostrou digna de redimir-me da preguiça e ter mais um item no meu cardápio caseiro. Por arrasto e curiosidade, fui dar uma olhada numa receita simples mas do tipo "emblema nacional" da Índia que é o Dal, um prato que é feito com pelo menos um par de tipos de lentilhas e um tempero daqueles de dar festa na boca. Já fazia uma versão suave do prato, uma versão mais perto da israelita, e me interessei baste pelo aspecto. Mais outra adição, uma nova versão e que faz um par tão bom com o Naan.

Não há como contornar o facto de que temos que comer, é essa a maneira que o nosso corpo tem de manter-se vivo e a mexer. Mas escusamos de comer sempre a mesmas coisas com medo de nem saber se gostamos ou não. O facto de fazer de raiz estas coisas (e aprendi a fazer um condimento que de outra forma teria que conseguir pela internet) dá uma realização interior de conquista e vitória no que toca ao desconhecido. Seja que aspecto for da nossa vida, quando conseguimos ultrapassar um determinado obstáculo, quando aquilo que nos parecia uma obscura fórmula é solucionada, sentimos um certo calorzinho no peito de meta conquistada. Do saber fazer manteiga, iogurte, pão, de saber como fazer temperos que se acrescentam ao nosso tradicional alho,cebola e louro, e que sai bem, compensa em muito quando nos falam da perda de tempo, que no supermercado já tem tudo isso e que estamos numa de engajamento social. O valor primeiro, acreditem, é aquele que deposito no que faço, de como sei como foi feito e da realização final.

Aprender a fazer massa Filo, só por causa das chamuças, valeu a pena; aprender a fazer Ghee, a manteiga clarificada e menos nociva, valeu a pena. Todo o processo terapêutico de cozinhar (menos a parte da louça para lavar e o resto que abomino) alivia e com um resultado positivo no final das contas e é um afagar no ego muito gratificante. E como nem sempre podemos ir aonde nos apetece, viajar pelo mundo, pelo menos podemos tentar perceber os sabores que nos dão.

De vez em quando a satisfação ultrapassa mais do que devia e fazemos (eu sei que faço) figuras tristes. Levem em conta que não vivo em um dos dois grandes centros do país e por isso, encontrar um determinado ingrediente que não se via há décadas, fez-me executar a "dancinha da vitória" em versão 30 segundos num corredor de supermercado. Foi uma assunto que, dada a hora, não chamaram polícia nem camisa de força; estava sozinha e o assunto ficou entre eu, o pacote de trigo para Kibe e o desgraçado do Segurança que devia estar a visionar os monitores. E foi uma bela bandeja de Kibe de forno a matar anos de saudade e a dar valor nutricional às barrigas residentes.

Descobrir opções não só alimentares mas de muitas coisas que proporcionam mais do que ficar horas amofinando numa tela de computador é gratificante. O redescobrir a nossa auto suficiência e que é possível desenrascar-nos em muitas situações de forma simples, airosa e até com brilharete faz-nos bem. Muitas vezes me pergunto, se toda essa facilidade que temos ao alcance das mãos entre fruta já descascada e cortada, de tudo embalado em porções estudadas, não tira-nos aquele aspecto primordial de saber fazer por si que antes tínhamos. De ter a sensação de capacidade, seja a consertar o pé da mesinha de cabeceira ou até de restaurar o tampo de madeira da secretária.

Recuperar das avós a realização de compotas e conservas é outro aspecto interessante e que pode, desde que consiga engajar (eu consigo pela parte que tenho gulosos aqui no cafofo e torna-se engodo ajudar) a família para participar e ter tempo de convívio que sai do mutismo de tela ou de eremita na gruta (quarto). As compotas e conservas dão jeito quando estamos perante safra abundante e preços em conta. Os frascos de vidro que deitamos nos contentores de reciclagem (e espero bem que façam reciclagem) no meu caso, são aproveitados nisso: conservas e compotas. Colorido, eficaz e a mão de usar. Chegando por estas alturas já está em desfalque a precisar que chegue novas safras.

Ok, não tenho voz peneirenta, nem me visto ao estilo vintage; não grito até fazer virem as lágrimas aos olhos, nem desboco em mandar abaixo o desgraçado que de boa vontade (mais ou menos) me ajuda. Mas tenho a satisfação de poder olhar para os meus feitos, das descobertas, tentativas e erros, a chegar muito mais longe daquilo que considero a capacidade de me desenrascar e fazer de muitas coisas o meu laboratório de alquimia.

E tem sido... muito bom.

Apareçam


Rakel.

PS: realmente, dava-me jeito uma vaca na varanda...


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