Cara pejada de pó de arroz, daquele da caixa redonda e de pompom gigantesco e com nome "Pó de Estrelas" ou Pounds; batom carmesim opaco (daqueles que davam um tom rosado aos dentes), um colar de pérolas pequeninas sempre, mas sempre ao pescoço e aquele cheiro, que mais tarde descobri ser o cruzamento entre flor de maçã e naftalina, num vestido florido e arcaico. (percebem a birra com a naftalina?)
"Dá lá um beijinho à senhora!"
Meu doce Krishna, como eu odiava quando a minha mãe em empurrava para aquela cara enfarinhada e me obrigava a dar um beijo. A má vontade era evidente na posterior limpeza labial dos quilos de pó de arroz. Parecia obrigação de toda menina dar beijinho às senhoras; no meu caso, me perguntava a razão se eu nem a conhecia e se depois ganhava antipatia instantânea. Ter 3 ou 4 anos e nos obrigarem a dar beijos aos estranhos do nosso mundinho pequeno e mais ou menos pacífico era das coisas que nunca tinha percebido. Para quê????
Palhaços... das criaturas saídas dos livros infantis (e onde deveriam permanecer) e voltadas para as festinhas de aniversário infantis e ao terror daquela figura com cara pintada, voz de estranha e com sorriso maléfico. As cores berrantes das roupas os exageros de sapatos e gravatas (outra embirração minha com evidente paralelismo) quando pulavam e cantavam de forma que os nossos pais jamais nos permitiriam, faziam deles os Freddie Kruger na nossa versão de pesadelo nocturno.
Pai Natal então...obrigar uma criança a sentar no colo de um tipo que nunca viram, com a cor e o tamanho de um carro de bombeiros, não será certamente o sonho de qualquer uma dessas criaturinhas inocentes ensinadas a não confiar em estranhos. Para elas bastará, como foi para mim, aquela cartinha singela onde mentia com todos os dentes que a dentição precária de leite deixava e dizia-me boa menina o ano todo e que merecia os brinquedos na árvore de natal. Ou que avisassem o meu padrinho do meu pedido. (vale a pena apelar à mais um lado, não vá dar o acaso de que o velho gordo descobrisse que eu não me portava assim tão bem).
Primeiro me diziam que não deveria falar, deixar tocarem-me nem seguir pessoas estranhas e que se me perdesse, procurasse um polícia; logo depois obrigavam-me a dar beijinhos à uma pessoa que nunca tinha visto na vida e estoicamente aguentar os apertos de bochecha e beijos repinicados e babosos de batom. Mas onde parava a coerência?
Na Internet, vemos sempre aquelas fotos dantescas de crianças aterrorizadas e a chorar perto de pessoas vestidas de palhaço (do inferno), coelhinho da Páscoa (possuído) e Pai Natal (eu vou te roubar dos teus pais). Interiormente, é isso que elas pensam enquanto os pais tiram fotos, para mais tarde recordar e fazer disso mais uma acha da humilhação infantil a ser revivida na fase adulta. Isso e as fotos de nus, com menos de um ano de idade, em cima da colcha feita pela tia Emengarda.
Hoje, já há quem defenda que os pais não devem obrigar as crianças a dar beijos aos estranhos à elas; os estudos mostram que os molestadores de crianças muitas vezes são pessoas não só de dentro da família como amigos e conhecidos. Aleluia, finalmente a estória dos beijinhos passou a ser uma opção da criança e não uma obrigação taxativa.
Vida de criança não é fácil, principalmente quando tem que viver num mundo de adultos tão infantis como eles. Há alturas que perguntamos quem está criar quem, e mais uma vez, me pergunto se não deveria ser uma aposta a ponderar num certificação de capacidade parental à quem deseja ter filhos.
Psicólogos durante décadas defenderam teorias e teses que fizeram das crianças verdadeiros porquinhos da Índia de laboratório, fazendo de alguns deles, depois adultos, mais ou menos carentes ou coxos emocionais.
Houve a tese, na década de 40 do século passado, em que as criancinhas, mesmo recém nascidas, deveriam dormir num quarto só delas e os papás e mamãs a levantar noites a fio, nas noites de choro, fralda molhada ou barriga a dar horas. Defenderam também alguns, que seria benéfico para enrijecer o caráter da criança se ela não fosse amamentada ao peito. Em suma cortar todos os laços entre mãe e bebé e assim ficarem longe dos problemas e complexos freudianos futuros.
Depois nas décadas de 60/70 voltam aos conceitos da amamentação, da ligação bebé/mãe e os primeiros vislumbres do papel do pai para além da concepção da criança. Realmente os pais tinham nessa história toda de filhos, o papel de José com Jesus. Serviu para andar a guiar Maria grávida de um lado para outro, provendo sustento e protecção...e depois sendo chutado da história feito um "não presta". Finais de 70 começo de 80, aí afirmavam que uma criança teria que ter liberdade em tudo; não deveríamos cortar desses futuros homens e mulher o processo criativo e das descobertas. E daí resultou uma safra de crianças mal educadas que devido a falta de limites se tornaram uns adultos frustrados perante os não da vida real.
Vi recentemente uma entrevista em que o entrevistado diziam que o grande erro dos pais era dizer aos filhos que eles eram os melhores e que seriam capazes de fazer tudo o que quisessem...desde que quisessem. Cá entre nós, veladamente os pais dizem por outras palavras que o filho ou filha não deve contentar-se em ser..sei lá, alfaiate, mesmo que goste e tenha vocação para isso, ou que para quê ser professora da primária quando poderia ser uma Drª. Catedrática? É praticamente um peso de responsabilidade colocado nos ombros de cachopos de 15/16 anos em escolhas de profissões numa vida adulta, competitiva e selvagem.
Ser criança deveria ser menos complicado, sem esses esforços comparativos e competitivos entre os nossos e os filhos dos outros. De ter que determinar o futuro cedo demais, quando deveriam estar a brincar e divertir-se do que a escola de pedigree, a possível entrada para a Sociedade MENSA (uma versão do povo escolhido pelo Q.I no estilo Testemunhas de Jeová) ou se vai mudar o mundo. Infância deveria ser mais leve, pois a vida adulta é pesada, mesmo com todas as possibilidades em aberto. Há quem atinja os píncaros e mesmo assim, na insatisfação de não sentir sequer o prazer da vitória.
Já se brincou muito com o que a criança deveria ser, nos seus mais próximos sinónimos, ser criança é brincar, rir, inocência e alegria. E eu só vejo miúdos irritados, drogados com Risperdalina, acamados em apartamentos e obrigados a tomarem conta de si mesmos e a velarem pelo sonho dos pais.
Isso tudo, parece-me muito errado.
Apareçam
Rakel.
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