Cesto de Gávea Num Terceiro Andar - Sons de Verão






Nunca fui muito à bola com apartamentos, de viver em verticalidade numa vizinhança barulhenta, sem noção de que tudo se escuta e do gosto musical duvidoso. Vivi a minha infância e parte da adolescência numa casa com quintais e num bairro essencialmente residencial, praça central com igreja, parquinhos infantis e o comércio tradicional, apesar de ser um das maiores metrópoles da América do Sul. E fazia parte dos meus projectos zoológicos, incubar ovos de pombas, criar bichos (por vezes demasiados exóticos para o gosto materno) e perceber as estações pelo florir ou não das árvores da calçada. A vida ao mudar de continente, levou-me a conhecer as "delícias" de viver num apartamento de Lisboa e depois ir alternando de cidade e tipo de moradia.

Uma das vezes, calhou-e por sorte viver numa casinha térrea com um grande terraço que aproveitei para encher de plantas, e as minhas roseiras eram o meu orgulho e dor de cabeça. Deu espaço para um podengo completamente passado da marmita e das crianças brincarem no Verão com a mangueira e balões de água. No entanto, por contingências que nem foram tanto da minha escolha, acabei de novo num apartamento bem alto de onde vejo os humores e beleza da Serra D'Aire. Sei que pouca gente gosta de cidades pequenas, mas agrada-me o verde, conhecer e o ritmo pacato das pequenas cidades. Óbviamente há sempre o problema do pouco emprego, mas não há bela sem senão.

Para compensar a falta de terraços e quintais, fiquei com três varandas jeitosas; cada uma delas já me deu algumas surpresas, até bombeiros a entrarem em casa a meia noite para alcançar o andar vizinho (trancado do lado de fora) pela varanda depois de uma discussão doméstica que acabou menos mal.
Já tive andorinhas retardatárias que apanharam as primeiras chuvas e não conseguiam levantar voo e foram tratadas e soltas. Um mocho branco que ainda toma as grades da minha varanda no meio da noite para fazer o ponto da situação da caça; o casal de corvos que nidificou num jardim perto daqui e que vem buscar a ração do gato de rua que é tratado por mim e por outro vizinho. De vez em quando, uma pernalta típica dos rios aparece depois das chuvas, pela manhã a cata de minhocas do relvado em frente do prédio. Quando não há patos em ritmo heavy metal a andar pela cidade, com mais civilidade que muita gente, na calçada e em fila. As minhas varandas acabam por ser a minha cesta de gávea de onde tenho uma vista privilegiada.

Mas neste último Verão, tive um novo hóspede na varanda, uma cigarra. Deu-me um certo calorzinho de alma saber que um insecto que pode levar até 17 anos para completar a sua metamorfose fosse escolher a minha varanda para cantar e estabelecer-se. É o típico som de Verão: cigarras de dia e grilos de noite. O grilo é que este ano não houve na varanda como há 3 anos atrás.
Quando falei com algumas pessoas sobre a cigarra na varanda, me pediam foto para ver a bichinha, como se a minha palavra não chegasse. E se houve coisa que não fiz, foi perturbar a criaturinha no seu canto diário e desenvolto. "Não foste lá ver?" ou "não tiraste foto?". Parece que tudo tem que ser devidamente documentado por imagens para fazer realidade palpável. À mim, bastava-me sabe-la lá, o seu canto e o ar quente, pedindo aos deuses para ser poupada pelas andorinhas sempre esfomeadas-

Nisso, as pessoas são chatas e abusivas, desrespeitando a noção de paz e de vida mais ou menos selvagem e natural. Como os vagalumes nesse Verão que já fazia tanto tempo que não via, e deixou-me por umas horas, sentada nas escadas do prédio a vê-los dançar e a iluminar a noite.  Pelo menos, a qualidade do ar e poluição é mínima onde vivo, pois permite que estas criaturas tão sensíveis como estas consigam ainda achar vontade de aparecer. Nisso, sinto-me com sorte.

Mas basta-me saber que existem ali fora, cantando, luzindo, piando ou o som das garras agarrando as grades da varanda. Olho pelos buracos dos estores o mocho que sai num voo silencioso e preciso; escuto a cigarra na varanda cantando odes ao Verão. Vejo as andorinhas disputando os buracos dos estores num refúgio precário da chuvada inesperada e as patas parecendo notas musicais nas ripas brancas; vejo o olho redondo e amarelado da pernalta a tomar o pequeno almoço matinal e húmido. E basta-me saber que existem, que estão bem e levando a sua vida natural e por vezes solitária, mas a vida que lhe és própria.

Escuto, observo e aprecio, sem perturbar a ordem e a paz que merecem e precisam, só intervindo quando precisam realmente de ajuda. Sem documentar numa selfie, sem milhentas fotos e apenas guardar a lembrança preciosa de uma boa convivência.

Tomara muita gente perceber isso na vida prática, quando aprende-se a respeitar, não só os limites, como também a necessidade de respeitar o ir e vir, a liberdade de uma vida própria de horizontes abertos e ilimitados.


Apareçam

Rakel.


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