Cantigas de Pavio Curto e Mau Humor




Que atire a primeira pedra a pessoa que nunca sentiu-se com vontade de dar uma de Nero e tacar fogo nessa coisa toda das frases de efeito e bombásticas. Que tenha coragem de dizer que não sente vontade de cortar o cabelo de alguém com uma máquina de tosquia com lâminas rombas, desse  infeliz que que diz que tudo há-de dar certo...quando tudo corre pro lado errado.

Não há como negar, não há nada que dê mais nos "nervos" de um cidadão do que dar de caras com uma conta da luz com três dígitos à esquerda da vírgula, a estreiteza do salário, mais a prestação da casa e o preço das febras. Dirão então, a bem da verdade, que o facto de estarmos vivos e de saúde já é motivo que merece os agradecimentos ao altíssimo (e se calhar ao sentido de humor retorcido que ele tem) pela dádiva da vida. Não discuto isso, só discuto a qualidade de vida.

Propor-nos a realizar uma certa lista mental e pessoal, não aquela meleca que toda gente faz no começo do ano como forma de dizer que está focado e com controle da própria vida; estou a falar daquela lista mental que nos esforçamos ao máximo para realizar, coisas simples, directas e exequíveis. Não é a futilidade de emagrecer numa dieta nazista só pra ficar bem no biquíni, não  é isso. Essa lista então, a mais honesta e escorreita de todas, a que não publicamos ou fazemos eco nas redes sociais, parece pior de realizar do que os 12 trabalhos de Hércules. E não deveria de ser

De facto há alturas em que pensamos no que realmente é a vida e o sentido desta bagaça toda; somos apenas um número? Somos uma senha? Somos um objectivo de venda? Somos uma obrigação? Ou somos apenas um joguete como uma bola de ténis no plano divino? E nesses momentos de dúvida e mal dizer, em que não escapa nem o santo do altar, aí nessa hora de pensamentos insanos e pirómanos, aparece quem nos agite diante do pedúnculo nasal um livrinho do guru da moda ou o post do tipo que já cansou de picar o ponto e se torna um treinador de gente com baixa auto-estima e faz discursos motivacionais. E dá vontade de virar a heroína que bate com o pano encharcado. Essa personagem interpretada pela Ana Bola é agora a minha heroína (ao lado do Desert Punk) e faz-me pensar em desatar a bater nessa cabecinha lavada e relavada por frases motivadoras e vazias com um pano bem encharcado.

Uma vez, só uma, vi um vídeo de um desses motivadores, dos que ensinam a ser bons profissionais de atendimento ao público e vendas. E foi a coisa mais ultrajante que pude assistir e que mereceu a minha opinião negativa sobre o assunto. Comparar um profissional ao cão e ao gato...foi nojento. Em suma, se um cliente é mal educado e tem uma atitude agressiva, temos que ser cão...mesmo levando no lombo com o jornal enrolado, dali cinco minutos está a abanar a cauda e a mimar o dono, Mas isso, pelo que parece, serve de modelo motivacional e sustenta a premissa erradamente espalhada  da frase "o cliente tem sempre razão", mesmo quando não tem. Os motivacionais apenas motivam-se para cobrar um tanto para convencer um bom punhado que acreditam que tudo muda com um jargão e fórmulas de tratamento. Cada vez que vejo a frase batida e sem descoberta nenhuma dum tal Hilsdorf, emerge de mim uma serial killer de primeira água.

Mas pedem-nos a ligeireza de alma e o sorriso fácil quando tudo emperra e atravanca; pedem-nos que sejamos esperançosos nos desígnios divinos que são sempre construtivos, embora ainda não me tenham explicado a forma negligente de tantos inocentes a sofrer desnecessariamente. Mas ahhhhhhhh...desconhecemos o plano divino/espiritual que nos leva à isso. Aos pagamentos com juros de erros anteriores à nossa actual existência que vão acumulando sem zerar. Quer dizer, um cidadão nasce completamente tábua rasa, sem saber das cagadas das vidas anteriores, vive honesta e correctamente a vida e mesmo assim é fodido pela mesma...pelo facto de que o Karma, o tal lixado e que desconhecemos, está com o taxímetro ligado e contando a dobrar. E no final acabamos a viagem desta vida ainda em débito com as forças superiores. E uma pessoa escuta isso tudo e tem que aceitar como algo correcto e nem piar.
Isso faz com que uma pessoa pense que, se a vida vai ser fodida mesmo que faça tudo direitinho, mais vale fazer o que apetece e fazer do "que se lixe" o mote de vida...porque no fim das contas, tanto faz fazer bem como não.



Já não falo do esquentador que teve o Verão todo para avariar, mas não...ele vai avariar no momento que fazem -2º deste Inverno que se diz o mais rigoroso dos últimos 100 anos; nem é do prédio ter levado isolamento exterior e mofa nos quartos mais do que antes do isolamento. Da tremenda confusão que faz a facilidade com que se apaixona e desapaixona-se (e é desta, vais ver!) meia dúzia de vezes no ano; de como temos sempre que manter a calma e surge aquele ímpeto de  vontade de pegar num troco e desatar a "troncada" quando surge, em jeito de ajuda, um "keep calm and smile". Keep Calm o tanas!!

Fez-se luz com o meu pavio curto e fácil de estourar ao perceber que somos levados, de uma forma bastante suave e encoberta, a aceitar tudo pacificamente e sem levantar ondas. Somos levados a engolir a frustração e não perguntar, cobrar ou tentar questionar essa base falsamente benévola de plano superior escondido e inalcançável. Somos obrigados à pratica do bom viver e do socialmente correcto a engolir a pessoa mal educada, o cretino militante, seja ele o chefe ignorante e prepotente ou o namorado abusador e preguiçoso, pois temos que ser melhores que essa pessoa que nem reconhece isso, mesmo usando bengala e cão guia e vendo bem. Que sejam relevados comportamentos insultantes ou infantis de gente com idade para ter juízo ou que se sente superior, mesmo não sendo. É isso que fazem das pessoas, algo maleável e manipulável. Impõe-se boa cara e bons hábitos mesmo quando não existe fundamento para isso e quando as pessoas precisam de ter o seu lado negro tomando ar e apanhando sol. O meu está ali na espreguiçadeira a aproveitar o céu azul, em calções e óculos de sol, mesmo com este ar de frigorífico.

Não há equilíbrio e justiça é algo retorcido e pouco fiável. Sorte e destino não são contornáveis ou justos; dizer que há sempre um final feliz é trabalho da Disney, não da vida real. Na vida real as pessoas fazem escolhas pensadas e conscientes de serem mal educadas, de serem desonestas e de serem falsas na perspectiva de que ninguém irá questionar esse comportamento aberrante, por ser um acto deselegante apontar um defeito. Temos de sorrir e manter a calma; dar a outra face e admoestar e tolerar (palavra odiosa) para que, o bom convívio social prevaleça. Hoje dou razão à um tipo com quem trabalhei, que numa reunião semanal onde andávamos mais mortos que vivos, deixou cair o palavreado e atirou de caras com os foda-se pra esta merda toda, soltando os cães em caralhadas, sem ser aos berros, e a ver o chefe a entortar uma colher de café, nervoso até mais não com a voz gelada do tipo, até virar uma peça de joalheria estilo Vasconceliana. Não tivemos grande tempo para respirar, mas sei que o meu colega aliviou a alma e mais de metade dos que ali estavam, esgotados e perto de um virar psicopatas por falta de sono, se sentiram vingados.

Levei cotoveladas nas costelas por dizer que me dá no nervo ciático os escuteiros, já que uma colega de curso é chefe de grupo; não é correcto dizer isso, Rakel! E parece que foi errado da minha parte dizer não à solícita colaboradora da tendinha do tio Belmiro quando ela me perguntou se eu não preferia usar as caixas self service, ficou desconcertada, mesmo que isso favoreça o desemprego.

Somos levados de forma abjecta à sermos uns palermados durante a maior parte dos dias e só soltando a franga nos estádios ou nos jogos assistidos no café. Agora percebo os incentivos aos clubes e as facilidades todas; esses clubes e os jogos servem de pino de panela de pressão social. Mantém algum controle na situação e nas manadas.

Temos todos que comer quinoa, tirar o glútem (minha adorada cervejinha), fazer exercício e suar em bica, já que o correto e aceitável é ter os ossos dos ombros a espetar nas camisolas, caber dentro de umas calças 36 e ter gominhos no abdómen. Temos que sorrir muito, parecer de bem com a vida e postar a cada minuto uma dádiva divina concedida, mesmo que se tenha estourado o couro a trabalhar para isso. Temos que ser solidários e equipar Centros de Saúde, quando na verdade seria essa a razão dos nossos impostos, altos e diversos. Temos que acreditar no amanhã que será radioso e feliz ao estilo Mickey Mouse, que no fim das contas, a justiça prevalecerá... e acabo por chegar a conclusão que justiça cósmica é algo bonito na teoria e muito pouco vista na prática. Mas que porra de treta nos andam a vender???


Apareçam


Rakel.


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