Há uma fase que toda criança passa, mais ou menos até aos cinco anos de idade, em que se descobre e que o espelho se torna uma ferramenta de descoberta e fascínio total. É uma espécie de tomada de consciência do "eu" exterior, um começo de auto-adoração e de descoberta de gestos, caras e bocas.
Vá lá, é normal compreender que uma criança vai descobrindo o mundo primeiro do que a si mesmo: há uma data de estímulos que começam desde a batida do coração da mãe a ouvir-se in útero, depois o choque da luz e cores desfocadas e a cara da avó Alzira, com voz estridente, a encostar o nariz dela no da criança a guinchar "a minha riqueza!!!" Depois é a boca que vai descobrindo se é quente ou frio, mole ou duro, bom ou horrível. Daí que criança coloque tudo na boca, não por fome e incapacidade materna de alimentar a criancinha, mas sim por ser a ferramenta vinda de origem para descobrir o mundo...
...até ao dia que descobre o espelho e... olha! aquela ali sou eu!!! E aí começam por enxergar a estatura, o cabelo, como a boca se mexe quando falam... e daí passar a cantar os êxitos dos Teletubies ou do Batatoon vai um passo... agora são os Caricas, pois claro. Mas é uma fase de curta duração, bom... era de curta duração no tempo em que uma pessoa crescia com consciência de si mesmo fora do âmbito Android e redes sociais...
Agora pia mais fino, e descobre-se que a idade do espelho passou de rajada para as selfies. E que fique bem claro, não é a questão da pessoa tirar umas fotos num passeio, escolher a melhor e postar. Não é aquela foto assinalar um momento único... é aquela sangria desatada de mudar de foto de perfil a cada 15 minutos, de postar cada momento da crise renal em pleno serviço de urgência do hospital. É postar o prato que come, a sobremesa escolhida e a chávena do café no final. Logo a seguir postar que está cheia, mal dispota e mostrar a carinha de enjoo...
E nesta fase de espelho em selfie, há quem cometa barbaridades no estilo daqueles anormais na Argentina, que filhos da puta como são os taradinhos que precisam de likes, tiraram um golfinho bebé da água para selfies...até matarem o animal. Há gente que vai até a ponta de um precipício para tirar uma selfie radical e se escavaca todo lá em baixo, malhando com os cornos nas pedras e acabando no colo dos anjinhos. Valeu bem a pena... sem dúvida nenhuma.
Numa conversa com um colega de curso, falando destas regressões dos adultos (ditos), ele que é até percebe um bocado disso dos comportamentos e que analisa atitudes e modos de vida das pessoas, confirmou-me que os adultos de hoje perderam anos e anos de aprendizagem, de auto conhecimento e que se afundam até aos buracos do nariz nesta senda de medir a felicidade e a atenção alheia no número de likes nas selfies.
E eu fico cada vez mais pasmada, um bocado descrente, a ver gente que devia ter juízo, em bata numa consulta qualquer, em desaguo de selfies, a fazer beicinho e tudo, esperando que haja quem pergunte: "então amiga, o que aconteceu contigo?" E nem foi uma... mas uma data de fotos a mostrar cada ângulo e feição, que uma pessoa de 40 anos não deixa nada a dever à uma criança de 3 anos e meio a pedir aquele famoso "olhem pra mim como eu sou engraçadinha!!"
Dá que pensar a forma como expõem-se tão facilmente, não deixando nada por descobrir e nada por fascinar no mistério que cada pessoa carrega como bagagem. De livro aberto que se julgam ser, passam a espelhos estilhaçados nessa tentativa inalcançável de agradar toda gente e sem um bocadinho de auto-defesa... e depois é só apanhar cacos do chão...
...desnecessariamente. Esta é pra ti, que tens nome de flor e que ainda não saiu da fase do espelho.
Apareçam
Rakel.
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