...de ombros leves...





"Queres vir comigo numa caminhada pela cidade? É que não me apetece ir sozinha e já fiz a inscrição"

Obrigada pela preferência, pensei eu, empoeirada numas arrumações de garagem, por assim dizer, e um bocado curiosa. Coisa de minutos andar a cata das sapatilhas de caminhada, umas calças confortáveis e uma bolsita pequena onde caibam uns lenços de papel, os ósculos e pouco mais. Aí caiu a ficha: inscrição?  Mas que raio...

Então, lá desço eu a rua, cheia de boas intenções e a tentar matar o sentimento de culpa de ter dormido o dia todo anterior, na mais perfeita ronha, na mais inominável preguiça aguda. Vamos lá caminhar pela cidade, vamos lá ver se vai ser na competição ou apenas numa agradável passeata pelos lugares habituais.

Logo de caras, dou-me conta que o ponto de encontro é-me  inquestionavelmente um ferrão na alma, mas vamos lá... me perguntam da mala. Mas que mala? Havia de ter trazido uma mala e a V. nem me tinha dito nada de mala, nem eu tenho jeitinho para Linda de Suza e mala de cartão. Vou assim como estou. Divididos em dois grupos, cada qual para o seu lado...foi rever a cidade que estou a viver por escolha actual e que nunca conheço tudo. A cidade abraça o rio que serpenteia por cada canto que consegue cortar, murmurar ou então placidamente deixar-se ficar pela modorra de uma tarde de Domingo de sol e amena. Essa coisa dos 40º foi alarmismo.

Tirei uma foto a revelia do pedido da "guia" e de quem engendrou a performance, mas pisar o risco sabe bem e eu tinha que marcar este lugar para voltar novamente e tirar outras fotos, sem pressas, com um enquadramento mais adequado.

Falou-se depois de tudo o que representou esta caminhada, a carta escrita em cinco minutos para alguém como despedida, o andar  de olhos vendados confiando no guia (e se há coisa que perdi, foi a confiança cega e despojada por dá-cá-aquela-palha) nos achados, nas frases escondidas.

E enquanto cada um ia dizendo aquilo que sentiu e "pegou" desta viagem cá dentro, pensei cá com os meus botões algumas coisas. Certamente já simplifiquei tudo quanto havia que simplificar na minha vida prática. Sem dúvida, as escapadelas só para tomar café que depois se traduziram em ficar com as ondas a bater nos joelhos depois de uma aposta de caracóis e cerveja, de dizer aos meus filhos que não demoro nadica de nada e chego lá pela meia noite e tal... é como que aceitar sem qualquer remorso que aceito as inconstâncias e a falta de planeamento que a vida proporciona. É deixar fluir, não bater em pontas de faca e saborear o momento.

Já há uns bons anos fui de mochila às costas com tenda e o mais frugalmente possível passar duas semanas acampada na praia. Prefiro mil vezes isso a ter que ir para um apartamento alugado e fazer exactamente aquilo que faço em casa todos os dias. Pelo menos assim, alguém cozinha para mim e vive-se melhor em contacto com a natureza. Quem carrega uma mochila assim nas costas, sabe perfeitamente que quanto mais coloca, mais tem que carregar, sem saber quando é que os ombros vão sentir-se aliviados e descansar. Foi aí que comecei a aprender a gerir o pouco.

E depois daí, aprendi exactamente isso: que carregar muitas coisas, muitos propósitos, muitos desejos e muitas ambições, provocam dores, mal estar, incómodos tamanhos que atrapalham a maneira como saboreamos a vida. Quanto maior o peso, mais tempo andamos curvados a tentar carregar tudo adiante, mas sem oportunidade ou vontade de levantar a cabeça, olhar à volta e ver e entender o que nos rodeia. Sempre de cabeça baixa vemos apenas os nossos pés enfadonhamente comendo chão e a cor do asfalto, sem a oportunidade de ver a cor do céu, se há flores ou alguma coisa escrita com alguma certeza numa parede em jeito de arte rupestre urbana.

Se calhar, na próxima vez que me chamarem para uma outra caminhada cá dentro, a única coisa que acrescentaria à bolsita, seria uma garrafa de água e o meu novo brinquedo:deram-me  uma máquina fotográfica daquelas que não tem cartão de memória, nem podemos ver imediatamente aquilo que fotografámos. Vai saber bem saber esperar pelo resultado, quem sabe, até ficar agradavelmente surpreendida pela foto perfeita, ou ver-me na necessidade de voltar lá e gastar mais um rolo.

E quando se chega neste ponto de vida, em que gostamos de saber esperar, que não nos vemos em sangria desatada para ter tudo logo, já e agora...a vida é bem mais gostosa de viver. Poderá não ser a mais brilhante, nem a mais glamourosa, mas sem dúvida é mais honesta e sincera.

E não peço mais do que isso...

Apareçam

Rakel.

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