O Círculo Perfeito ou A Vida Percodan



Se cada um pudesse desenhar para si um mundo perfeito, na base mais honesta e escorreita forma de pensar, uma lista estudada e pensada na medida do conforto pessoal, fatalmente essa perfeição seria vista por outros como imperfeito e infantil. Mesmo que se pegue no lápis com mão firme ou use um compasso, essa linha perfeita riscada na dimensão desejada jamais teria um conteúdo perfeito. Apenas será perfeito se for desenhado a partir do modelo elaborado por não sei quem, que acha que isso é o lado perfeito da vida e fotocopiado vezes sem conta.

Cada um mais ou menos idealiza e pensa no seu próprio mundo perfeito, e pensa e repensa na construção peça a peça desta vida ideal com pares que pensam tal e qual o desejado.

Certamente que o meu mundo escolhido a dedo não caberia num círculo perfeito, isso já é ponto assente... o lado transversal que vivo e penso da vida como minha não teria uma forma limitada e encaixada numa forma geométrica capaz de nascer de cálculo e precisão.  E acho-me no direito de pensar que, apesar de nadar na ausência de forma, do conteúdo não ser o mais popular na actividade social, é no entanto aquela que me caracteriza e é honesta.

Um cretino é um cretino, e não adianta reformular a palavra para um eufemismo mais adocicado. Seja ele um banqueiro com declarações abestalhadas, seja um novo rico que pretende sentir o frémito de matar um animal apenas pelo prazer da sensação, são cretinos na mesma. Aliás, segundo dizem os estudos virados para o assunto, essa coisa de matar por desporto é um belo caminho percorrido por qualquer sociopata que se preze. Mas ainda não há estudos que cheguem pelos vistos. E no meu mundo, caberia tão bem chamar de cretinos tantos quantos fazem e divulgam as suas coisinhas de um mundo perfeito que cabe dentro de um círculo desenhado na base do cálculo. Tudo aparentemente...perfeito. Mudar a maneira como penso apenas para agradar acaba por ser uma mentira e acho que a honestidade é um dos predicados desejados na lista, certo?

No meu mundinho disforme, eu sei, não cabe muita gente. Mas aquelas que pelo menos conseguem entender que estou bem dentro desta "nuvem", que tem o jogo de cintura para entender que o meu padrão não é padrão para a perfeição socialmente aceite, são fantásticos. E fica cada vez mais evidente que  sair da forma perfeita ou não conseguir viver em tão acanhado limite, é visto como algo a ver a distância e não conhecer ao menos... ao de leve.

Sentados numas escadas a escapar do frio e vento duma suposta noite de Verão, falou-se abertamente de como é tão pouco e tão simples aquilo que se quer e aquilo que é-nos negado. É que, apesar da lista perfeita que cabe tão bem dentro do círculo perfeito, a vida apresenta-se disforme e nada perfeita. A lista do ideal tantas vezes tentada a ser colocada em prática por tanta gente, acaba por aparecer desfocada e infeliz no conteúdo e na prática. Diz-se e deseja-se um predicado e no final acaba-se num adjectivo. Se ela deseja um príncipe, acaba na mão dum ogre no verdadeiro sentido da palavra. E o conceito de príncipe vai muito na onda do livro infantil, aquele palerma de leggins que olha para a princesa e a leva para casa sem saber ao certo se ela sabe, pelo menos, ler e escrever.



Realmente, o que me deu alguma esperança foi realizar que afinal não sou só eu a ver algo de errado no conto de fadas perfeito, que mora na casa perfeita do casal perfeito, que tem uma aparente vida perfeita...mesmo que por dentro nada seja perfeito. E lá a desbocada (que não era eu, algo de novo e refrescante no convívio social), na fase mais aguda da revolta contra este conceito do círculo perfeito com conteúdo perfeito, disse ponto por ponto cada maldita merdinha que se costuma dizer do ideal e que acaba por ficar como as espinhas do peixe: na borda no prato. Perguntava ela, naquele misto de descrença, revolta e confusão, qual era a razão para que o simples e mais básico conceito de vida a dois acabe por ficar em águas de bacalhau. Dizendo-se então honrado por ouvir e perceber os nossos pensamentos,o único integrante da ala masculina explicou que o conceito de independência, inteligência e maturidade...mete medo à maior parte dos homens. Ganda porra...

Ok.

Então percebemos que a lista é apenas um assunto a dizer-se em "modo social", valendo menos que ranho de caracol; que os vira-latas armados em lobos proliferam a olhos vistos. Que ainda não perceberam que o facto de não, não estamos constantemente a dar resposta signifique indiferença ou descaso. Afinal, em como ficamos, perguntámos, somos grudentas ou somos indiferentes? Temos que nos fazer de burras e rir de cada piada sem graça? É assim tão mau para o ego ter opinião oposta, pessoal? Definir novamente o conceito de independência para que não seja desconfortável ao outro? Afinal, alguém nos pode fornecer um manual de instruções? É que dava jeito, já agora...

Passadas duas grandes guerras mundiais, a liberação sexual, a revolução informática e a globalização do mundo...

...e cá estamos nós a viver as mesmas coisas que vivia-se no século XIX.



Ela quer o príncipe encantado e o mundo perfeito, com direito a casa branca, dois filhos o cão e os fins de semana em família. Quer a foto em que ela, pelo menos num dia, vestiu-se e sentiu-se princesa. Ele tanto quer a mulher dependente, que não sabe nem trocar uma lâmpada sem ajuda do cabeça da casa, como quer que ela seja menos dependente e esteja constantemente a perguntar o que há de fazer da vida. Ela diz que sim à tudo o que ele diz só para dar bom ambiente... e ele se irrita com a falta de espinha dorsal erecta dela. Ela investe nos filhos, na ginástica e decoração... e ele procura quem lhe apague os incêndios. Ela sabe... mas faz de conta que não, afinal, há a casa branca, as férias, o carro acabado de trocar e a escola paga dos miúdos. Quem sabe é tudo uma fase? Até o dia que ambos fartos da vida perfeita, dentro círculo perfeito, da casa perfeita e de tudo que aparentemente parecia perfeito, fartam-se um do outro e vão viver realmente da maneira que precisam viver. Não tão perfeitamente desenhado, não tão devidamente escolhido, mas sem dúvida, mais honesto.



Não é perfeito, não é feito com o homem capa de revista Men's Health ou a mulher FHM, mas fazem viagens fantásticas e completamente fora de planeamento, na base do só se for agora. Ele até pode ter a escova de dentes lá no copo do lavatório, mas mais que isso não. Falam, olham-se nos olhos, coisa que está a cair na extinção em favor do telemóvel ou livrodatromba. Ela acorda de mau humor e ele sabe, ele nem sempre é fácil de contactar, mas não é nada por aí além. Ela fica nos cascos quando não consegue passar um boss do jogo e ele faz pipocas para o filme na TV. No fim das contas, nenhum dos dois é perfeito, mas vivem dentro desta falta de cálculo e de encaixe geométrico melhor do que muitos que delinearam tão bem um percurso perfeito de uma vida perfeita, inócua, sem surpresas e absolutamente aborrecida. Aos olhos dos outros, eles estão tão errados...

Somos tão poucos, aqueles que preferem não escolher qualquer coisa apenas pelo bem da companhia e fugir da solidão,  que estamos cagando para o que pensam de nós e do que gostamos realmente, que pergunto-me se na criação deste mundo moderno, aparentemente aberto, a sensatez desapareceu e deu totalmente lugar à esta vontade de parecer ser feliz num mundo aparentemente perfeito, de gente aparentemente perfeita e encaixada matematicamente no lugar. E não, não é um círculo, mas um desconfortável mundo quadrado...

...e tudo resume-se ao simplesmente ter quem nos segure a mão neste caminho. Certo?

Apareçam

Rakel.


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