Compaixão. s.f Sentimento benévolo que nos inspira a infelicidade ou mal alheio.
É um tipo de remédio que só se usa externamente, tópico e que raramente usamos internamente, como meio de nos curarmos de males que nos atacam.
Somos mais vezes umas bestas com nós próprios do que para as outras pessoas; somos indiferentes aos nossos sinais interiores de que estamos a nos tratar mal e porcamente, mas vamos levando tudo na base de limites a testar, obstáculos a ultrapassar e todas estas cenas muito giras que vem nos seminários de "melhoramento pessoal e social" que agora estão tão na moda.
Estão de certa forma a tirar o nosso direito supremo de sermos indulgentes com a nossa pessoa; ser indulgente pode vir a ser comparado com fraqueza, preguiça, falta de auto-estima ou outra coisa qualquer.
Temos que ser fortes, sempre na luta, cabeça erguida apesar dos pesares. E é nessa base que vamos sendo domesticados a viver, sem olhar direito para cá dentro, sem palavras doces, sem tapinhas nas costas de um "vá lá, pronto, fizeste asneira mas tudo há de se compor". Isso não existe nas exigências necessárias para ser uma pessoa forte e lutadora.
Aloooouuuu!!! Vida não é só luta. Na vida há lugar para coisas como olhar para os lados, encantar-se ou deixar-se encantar, desencantar-se e depois chuchar no dedo. Temos que ser mais benévolos com nós próprios. Quem disse que somos uma máquina que só pode ser definida como que anda nos trilhos, sempre em frente a todo vapor????
Parece-me, e digo na base científica, que estamos sendo habituados e compelidos a não sentir mais do que os piques de um jogo de futebol ou de uma data limite de entrega de trabalho.
Vamos nos forçado cada vez mais, corpo e mente, a ter apenas um fito: o sucesso merecido ou então a pior das coisas, aquilo que chamamos de auto-defesa do mundo exterior daquilo que supomos que possa a vir nos afectar, magoar e entristecer. Endurecemos ou esvaziamos os corações, fazemos uma paliçada em volta do nosso eu, criamos um personagem forte, que nunca está mal, tudo está bem, mesmo quando não está. Somos condicionados a sermos fortes, intransigentes com as nossas necessidades e fraquezas, Jogar pelo seguro, antecipando e corrigindo os possíveis deslizes, varrendo para baixo do tapete tudo aquilo que se sente e transformando tudo aquilo que não podem ou não conseguem controlar num ideal.
O ideal é uma porra. O ideal é perfeito, imagem sem lascas, todas as qualidades possíveis, não há nada que estrague aquilo que desejamos. Não há desilusões, tristezas, nem tão pouco surpresas, alegrias ou picos de adrenalina. Navega tudo em velocidade de cruzeiro, devidamente colocado num rumo que nunca há de chegar ao fim ou sequer à algum lado. Não magoa, não nos tira o fôlego... nada de nada.
Não podemos errar, não nos permitimos errar ou sequer pensar em arriscar; o que se coloca em jogo em cada risco é tão sobrevalorizado que o melhor, o mais acertado, é continuar seguindo na linha dos carris, a todo vapor, sem olhar para mais nada do que esse caminho traçado em vigas de metal. Firmes como uma rocha, mas completamente vazios.
Corremos, controlamos a boca; vestimos e agimos como esperado; o relógio controla o correr das datas; esforçamos mais um bocadinho o limite que nunca chega a ter um. Da nossa paciência, limite de disponibilidade, da nossa resistência física e mental; atende-se sempre o toque gritante do telemóvel, ele manda, nós mandamos pouco. Investimos 90% do total das nossas vidas no trabalho, um lado competitivo e seguro, pois as regras estão ali traçadas e tudo se baseia em saber jogar bem o jogo. O lado dos afectos... esse fica para depois, ainda há tempo, não é importante. Sabemos o que não queremos sentir, o que não queremos passar. Um dia e outro passam e a nossa auto-compaixão sufoca-se nesse aperto e correrias. Desfalece então em algum canto do nosso corpo, remoendo, destilando cada bocadinho que foi ignorada, deixada para depois, menosprezada.
Não, não nos permitimos ter essa "fraqueza de sentir"; arrume-a num canto, limpe, esvazie o coração (é bem verdade, a manutenção de um quarto vazio é bem mais fácil, embora menos rico), endureça-o, deixe-o a pulsar fortemente apenas porque correu 10 kms para manter o corpo são. Nunca se desfaça do ideal, nunca atreva-se a tentar encarar o verdadeiro quebra cabeças que é uma pessoa. Seja um voyer do mundo, apenas experimentando as sensações e vidas dos outros. Coloque-se atrás de uma tela, de umas 7 polegadas movidas a dedos. Isole-se de tudo quanto possa vir a fazer-lhe mal. Pior ainda, aprende-se a não nos sentimos responsáveis por aqueles que cativamos; esse é um assunto que é jogado para o outro lado, o problema é do outro que se deixou cativar. Tudo aquilo que se diz ou que se deixa fazer crer... é tudo tão volátil...
Dizem saber amar-se egoístamente; aceito que acreditam realmente saber amar-se, mas no campo do mimo exterior, da compra feita, do fim de semana no SPA com pedras quentes, tal e qual como aparece naquelas meninas da T.V que são o supra-sumo da fama relativa deste país na beirada do Atlântico. Isso é pouco, muito pouco.
Um belo dia, sem dar por isso, a auto-compaixão solidifica-se, morre pedrificada em algum lugar do corpo. Mas como posso estar doente se cuido tão bem de mim, se como tudo certinho, sem gorduras, sem açúcar, sem saber a nada? Corro, zumbo, aeróbico-me (palavra atirada assim ao calhas e o corrector nem tossiu), bicicleto... puxo por mim, dou tudo de mim, e agora cai-me cabelo às mãos cheias, dores aqui e ali. O corpo falou tantas vezes comigo... e nunca ouvi.
O trabalho, esse investimento seguro, onde foi subindo cada dia um degrau mais, que foi lutando por cada novo desafio. Deu-se horas da vida, dias de descanso pendurados numa loja de penhores em favor de mais tempo a investir. Os filhos e o companheiro ou companheira hão de entender que é para o benefício deles, uma boa casa, bom carro, boas escolas, boas férias...que geralmente passam sem eles, já que está a investir tudo no trabalho.
E chega o dia que a vida olha para ti, te vê aí tão certo de ti mesmo/a, que te tira aquilo que tu pensas que vem a ser o mais importante da tua vida: a saúde em troca dos afectos; o trabalho em troca da auto-compaixão. E ficas apenas agarrado ao ideal, essa miragem perfeita, sem cheiro, sem gosto, sem nada. pior ainda, pode até dar-te aquilo que julgas ser o teu ideal. E no final das contas, o teu ideal ficou reduzido numa faísca pequenina, dentro de um quarto vazio, num corpo castigado pela falta de auto-compaixão... e vais culpar deus, as invejas alheias, o sucesso que não foi suficiente ou então ao destino fatídico que te calhou nesta vida. E andou na verdade a substituir a auto-compaixão por uma anestesia geral, sem sentir, sem viver, e com uma noção distorcida de conforto interior.
E ainda assim, chegado nesse ponto, não vai assumir cada pedra com que calcetou-se esse caminho e ainda se lastimará como vítimas do sistema. E o sistema, quem o faz, o aceita e o conserva, somos nós.
Nesse caso, felizes os "loucos" que se permitem sentir, que se dão ao trabalho de serem mais gentis com eles mesmos. Dos que se estão nas tintas para o que os outros acham que seja melhor para eles; dos que preferem tocar o piano com as teclas todas e deixar de martelar sempre na mesma. Abençoados sejam aqueles que derrubam os muros, que deixam janelas abertas e que não se escravizam por miragens. Dos que se cansam de brincar de faz de conta e vivem de verdade as coisas...
Embora seja aos poucos que acordam para esta constatação, nunca é tarde para começar, mas às vezes tarde demais para recuperar algumas coisas que já não existem.
Apareçam
Rakel.
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