A arte do desapego é um exercício pouco frequentado, mal compreendido e muito esquecido. Segundo Siddhartha, o Budha para os íntimos, iluminou-se o pensamento quanto resumiu o ter, o querer no tempo e no espaço de forma simples:
Aquilo que desejamos traz-nos infelicidade, eu sou apenas um agora nesta vida entre outras tantas que se viveram ou que viverei. O hoje e o amanhã são uma migalha no movimento Universal e só interessa não o quando, mas como lá cheguei. O ter não qualifica o ser.
Desapego não significa que não se tem a capacidade de apreciar as coisas ou que seja um tipo de sonambulismo auto-induzido. É saber entender que tudo é transitório, que não nos pertence e que só é emprestado por um período de tempo limitado. A responsabilidade existe no acto, na consequência e na gerência dos factos. Não é sacudir dos ombros o que se fez, mas é ao mesmo tempo a via de perceber que não nos podemos martirizar constantemente pelo erro, pela falta. O que nos responsabiliza é entender o erro, trabalhar para remediá-lo e aprender com isso.
A culpa, essa safada, só fica se houve intenção, necessidade de conseguir de qualquer maneira, sem pensar nas consequências, aquilo que queremos ter e ser. Enquanto continua-se a martelar no âmbito de que todos tem, porque eu não posso ter também, perde-se a certeza que cada caminho é diferente para chegar ao mesmo lugar. Felicidade é subjectiva, por isso é que cada uma é diferente de pessoa para pessoa; se houve o momento em que para ser feliz foi preciso ter algo, chegar a ser algo, há-de em algum momento ou eventualmente muito cedo, perceber-se que na verdade... até nem era nada importante e não fez a felicidade surgir.
Mesmo podendo parecer uma guru sentada na posição de Lótus, enrolada num lençol branco, mãos postas em posição de saudação Namastê e sem pinta de iluminada, não se pode avançar na idade sem pensar que cada uma destas coisas tem o seu ponto de coincidência. Na verdade, cada vida pode ser percorrida por um caminho diferente, tanto pode ser como a Rota 66 como a estrada que sobe os Andes. Enquanto umas são largas e sempre em linha recta, com lombas suaves, com o horizonte na frente outras são feitas de subidas íngremes, curvas apertadas, sempre beirando o precipício e perdendo o fôlego. Ambas chegam ao mesmo lugar, mas a felicidade é subjectiva, felicidade não é algo permanente e nem é um dado adquirido e sempre conseguido sem que se mereça.
Se há um ponto importante no nosso labirinto raso interior, é que não podemos basear a nossa felicidade naquela que outro nos pode proporcionar. Colocar a nossa paz interior na responsabilidade de outra é das maiores borradas, pois enquanto uns rodam pela Rota 66 outros vão descendo os Andes com o pé no travão. E sendo assim, se cada estrada é diferente, não se pode prometer dar ao que vai na rota larga e sem impedimentos que entenda as necessidades de alguém que percorre um caminho estreito e complicadito. A paz de espírito alcança-se sabendo que muitas promessas são feitas na mão do desespero oportuno; naquele momento em que se é apanhado no meio do turbilhão pessoal ou de outra pessoa fazemos promessas. O desapego das promessa, da tentativa incessante de ter e ser, de perpetuar até ao limite a felicidade baseada em coisas, de possuir ou sentir-se preso por algo ou alguém é meio caminho para a paz de espírito. A outra parte é perceber realmente que as coisas são assim, mas perceber mesmo; nem que custe uma boa parte da vida a perceber que as coisas começam dentro de nós mesmos, não na base da aceitação... mas da compreensão do nosso lugar no mundo.
Se estas mudanças sociais feitas do efeito crise ensinaram algo, é que somos perfeitamente capazes de viver com menos coisas mas com mais sabedoria; que se perdemos a ilusão do futuro fácil e contínuo de um lado, ganhamos uma perspectiva mais real do que somos e queremos. E muitas vezes, quem sabe, até é só isso mesmo, ter coisas é apenas uma maneira de preencher um vazio interior, atafulhando de um número incontável de objectos símbolo de um sucesso exterior. Mas o labirinto interior... completamente no abandono, vazio e sem saída.
Apareçam
Rakel.
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