Quando o RH é Negativo - Mas Por Vontade Alheia TEM Que Ser Positivo





Já cheguei naquela idade, ou capacidade interior, de manifestar os meus estados de espírito conforme a minha vontade. Já não tenho 20 anos essa necessidade de ter que agradar toda gente para ser aceite e tida como alguém razoável. Não há espaço para ser razoável quando me sinto indignada, nem me sinto obrigada a dar sorrisos em jeito de saldos quando não me apetece. É por aí mesmo: ter o direito de me sentir como bem entendo.


Desconfio seriamente quando alguém pula estágios de alma para ficar "tudo bem"; seja do que for, ouvir a maior descompostura dada pela chefia e sorrir, pois temos que ser positivos e ver o lado construtivo da crítica. Mesmo que tenha sido injusta, mesmo que o erro não tenha sido nosso, mas... vamos lá afinfar um sorriso e vamos fazer boa cara. Seja da declaração taxativa de alguma doença manhosa e de difícil cura. Do que for, primeiro que tudo o resto, temos o direito de nos sentir como bem nos der na telha: putos da vida, tristes, raivosos... ou até mesmo um cocó.

Desconfio de quem não percebe que é saudável sentir-se um bocado triste; perdeu o cão, o namorado está doente, ela se foi para um estágio de 1 ano na Mongólia, morreu a avó. Dói e é bom sinal, significa que há envolvimento emocional, que não é apenas "algo facilmente ultrapassável" e apenas que é prezado.

Estou aporrinhada e vê-se logo na cara, pisam-me os calos (essa do somos uma união e um grupo que luta por todos foi a pisada no meu calo de estimação) e sai o palavrão digno do acontecimento, acontece uma coisa boa? Maravilha... é desmanchar-me em sorrisos. Mas se aquela amiga minha, que tem o filho preso à cama e com dias contados de vida (15 anos e desde os 9 incapacitado) começa a chorar... eu choro com ela. Não há milagres, não há forma de dizer "tens que pensar positivo", só posso lhe dar o meu abraço, os meus lenços de papel e chorar com ela. Não há palavra que se encontre em qualquer fé ou religião que alivie uma mãe ao ver o filho a morrer. Coisas de mãe. Coisas de quem sente.

Vendo as coisas por outra perspectiva: tudo indica que algo não vai correr bem, tudo se coloca em posição estratégica, financeira, de gestão danosa e incapacidade pessoal, enfim põe-se a jeito para tudo dar errado. Mas temos que ser positivos e optimistas... numa mão mal cheia de promessas feitas a pressa.

Pensar positivo ajuda, mas não resolve. Chega a conta de luz escandalosa ao mesmo tempo que a máquina de lavar faz greve geral e o filho fica cheio de anginas; isso no mês que há menos para receber e que por incrível que pareça ainda se junta ao facto de aparecer de rompante a precariedade do trabalho. Isto só faz pensar: ainda vem mais? Ver com olhos práticos toda esta situação maquiavélica, não será inspiradora para ter dizer "temos que pensar positivo porque tudo há de correr bem". Não, tem-se o direito de estar aporrinhada, chateada ao cubo e perguntando aos lá de cima se já não chega. Só apetece arrebentar...

É mais ou menos como aquela situação das bolhas nos pés: há que arrebentar primeiro para depois curar. A razão crua e despida de artifícios encorajadores é necessária para estourar a tal bolha. Soprar depois o doí-dói e colocar a pomadinha e gaze esterilizada e que vamos ficar logo bons... vem depois. Fases, respeito por estados de alma e os seus respectivos estágios, se faz favor. Estou-me nas tintas com as frases inspiradoras dos mestres do conhecimento de livro do mês ou de conversa motivacional. 

Da mesma forma que se pretende que as crianças sejam mais calmas, dóceis a toco de comprimidos (hoje qualquer criança que pule mais um bocado e que faça algumas asneiras são chamadas de hiperactivas), pretende-se que o adulto razoável e feliz, seja positivo, ponderado e de falas mansas... mesmo que tenha uma agulha espetada nas nalgas. Há quem não se importe de ter os pés martirizados em nome do bom parecer. Quanto à mim, tenham lá paciência, mas incómodos não são feitos para ser suportáveis, por isso ganham o nome de incómodos, a condição que aporrinha e incomoda, chateia e mói a capacidade de bom humor.

Larga-se nas mãos da missão desta vida, na vontade de deus e nos insondáveis mistérios da vida e do destino o nosso rol de vitórias ou deslizes pela ribanceira. Fácil demais e sem fundo motivacional. Já nem vale a pena falar de Jó e da sua infinita paciência, pois todas tem um limite que nos leva a questionar a enxurrada de acontecimentos menos bons como pouco atractiva e se a merecemos de verdade.  A minha paciência está por um fio de cabelo... a onda zen anda desgastada e precisa, sim senhores, de algum tempo de montanha para conseguir recarregar baterias.

E aí bate o ponto. Quando a desmotivação chega no cume do "eu me sinto um cocó".

Uma coisa é tomar distância e procurar soluções sem o carrego de mil e uma opiniões, bem intencionadas é claro, mas que estão há anos luz da nossa realidade. Outra será estar isolado por puro e simples acto de contrição, aquele momento em que se sente que há uma nuvem negra, ao estilo poluição chinesa, sobrevoando a nossa cachola e que só troveja em cima do nosso escalpe. É o lado mais profundo de sentir-se um cocó, quando na verdade não o somos, mas é só nisso que pensamos: somos um cocó, tudo está a dar errado na nossa vida, não somos boa companhia e só queremos os remanso do sofá, uma data de lenços de papel e fazer off ao mundo. Isso é o pé na beirinha da depressão. E depressão não conta no jogo.

Sejamos então honestos, mas em primeiro lugar com nós mesmos, estamos bem, ora que coisa boa, não estamos, escusamos de dizer que estamos bem. Não estamos e pronto. Se não estamos bem, é conseguir refazer o enredo de maneira que se veja onde foi que metemos o pé na poça e corrigir o acto. Se de facto, por experiência já comprovada é inegável que nos saímos melhor com uma determinada conduta, que os preceitos em que nos movemos dão certo, arrisca-se a mudar e veremos no que vai dar. Deu errado? Olha, lamentamos, nos sentimos mal com isso, mas pronto. Chega. Voltar ao registo anterior é a melhor prática a adoptar e que se lixe a taça. Não há já espaço para abébias.

Resumindo a verborréia acima: faz mal para a alma fingir o que não sentimos e o que não somos, a nossa lealdade passa em primeiro lugar com a nossa própria consciência, ela vive connosco, está ali a atazanar os ouvidos e por isso mesmo há que manter boa vizinhança. Vez por outra, a vida nos oferece um verdadeiro pé na bunda, é um acordar para as realidades pouco líricas. Sentir triste faz parte, mas estados depressivos é a militância da tristeza como vitimização. O movimento universal encarrega-se de nos oferecer também a conjunção mais filha da puta que é possível existir, mal de amores com a malfadada falta de fundos e uma modorra desgraçada; nem sei se é por puro gozo de nos verem assim, ou algum apelo à nossa capacidade de estabilidade psíquica. Xinguem, esbracejam, mutilem almofadas, mudem o corte de cabelo, pintem as paredes do quarto de roxo, chorem até a desidratação aguda e da necessitarem de duas litradas de soro glicosado nas veias. Façam bonequinhas Vudu e espetem quem bem lhes apetecer, tomem o maior porre, aquele atómico que nos faz lembrar "ohhh meu fígado existe", dancem até a sola dos sapatos gastarem. Mas há limites para tudo, até para sentir-se um cocó.


Apareçam


Rakel.

Comentários