Os Monstros



Na infância, somos bombardeados por todos tipos de coisinhas ruins para nos obrigar a comer a sopa, tomar os remédios. O Papão, o Homem do Saco ou A Velha foram os primeiros monstros a povoar os terrores nocturnos e diurnos, dando depois lugar aos que ficavam debaixo da cama, dentro dos armários e os que espreitavam pelas portas. Faziam questão de nos meter medo mesmo a brava e depois reclamavam da gritaria a meio da noite, das inseguranças e todo o resultado de uma homeopática dose de "meter medo".

A sopa... a malvada sopa que colocavam-me na frente fosse no pico do Verão ou no Inverno... a maldita sopa de ervilhas da minha mãe, o maior engulho feito na face da terra. Mafalda... como te entendo... e lá vinha a estória da Velha que vinha me buscar de noite enquanto dormia.

Não é por acaso que crescemos com a consciência de que tudo que sai do padrão estipulado, primeiro pelos nossos pais, depois pela sociedade, acabe por nos colocar na fasquia dos preconceituosos. Infelizmente, para os meus pais, a minha veia "do contra" fez que pensasse menos no detalhe da aparência e mais no que teriam para me mostrar. O termo monstro associado ao aspecto caiu no chão no dia que descobri no meu bairro o Instituto de Ortofrenia, um eufemismo para hospício, a casa dos indesejáveis. Nesse catálogo de indesejáveis, colocavam tanto os transtornos psíquicos (e a homossexualidade e o vício da droga eram vistos como problemas psiquiátricos) como os defeitos do corpo, que poderiam ir da hidrocefalia à trissomia 21.  Não eram como o resto das pessoas, apenas diferentes, e essa diferença jogava-as nesse lugar que as protegiam do mundo e da vista do cidadão normal. Para não ofender as sensibilidades e colocar fora da vista dos pais a "falha da genética". E tinha lá uma menina, mais ou menos da minha idade, que todos os dias ficava numa janela., eu acenava e ela também. Até uma enfermeira dar com a situação e tirá-la de lá.

A piadola que coloquei lá em baixo da conversa das duas maçãs, é apenas uma leve batida no verniz fininho da nossa sociedade. Pois ao mesmo tempo que tornou-se viral o vídeo do Nick Vujicic, fazendo chorar pepitas grossas pela coragem e pela superação dos obstáculos, e dando mostras que nada é impossível desde haja vontade, uma menina é colocada fora dum restaurante por causa das cicatrizes no rosto.

Com 3 aninhos de idade, quando deveria estar na fase de que toda menina é uma princesa, a Victoria Welcher foi "convidada" e quem a acompanhava , a abandonar o recinto do restaurante das galinhas de plástico. Uma forma cretina de higienizar o ambiente e evitar que algum cliente ficasse assustado com uma menininha de 3 anos. A pequenina foi vítima dum ataque de um pitbull, perdendo uma vista e ficando com algumas cicatrizes no rosto, a culpa, não será dela se a aparência não seja digna da aprovação destes dois papos americanos.


Monstros? São os que estabelecem padrões que nem mesmo eles se encaixam. São os que forçam que sejam colocados como "incompetência" ter piercing, tatuagens a vista, o estilo das roupas. Há o caso da rapariga que foi atendida mal e porcamente no hospital aqui no brinco da Europa... por causa das tatuagens e da forma como se vestia. Só por acaso... peguei uma peça de roupa (eu guardo algumas coisas que acho que perduram no tempo) e comparei tamanhos. O Médio de há 20 anos atrás não se compara com o actual Médio. Descem e minimizam os tamanhos obrigando-nos a pensar que estamos praí a abarrotar nas costuras e a transbordar nas ancas.

A Inês, para trabalhar na EDP, teve que cortar a rasta, uma comprida e escondida rasta, assim como tirar um piercing da boca. Ela não pode usar rasta e piercing... mas os senhores que lá andam de fato azul escuro e gravata vermelha podem carregar quilos de caspa nos ombros, unhas e dedos roídos... mas não tem tatuagens a vista, certo? Cada vez que vou ao balcão da EDP dá-me vontade de soprar nos ombros destes senhores e tirar um bocado da neve que se acumula ali... em cima do fatinho correcto e bom tom.


Monstros, existem de verdade, não andam debaixo das camas, não tem dentes afiados, nem ar de que saíram das profundezas da terra. Na maior parte das vezes, é quem tem a cara de anjo e o coração cheio de vermes...mas desde que tenha o sorriso perfeito e o fatinho a maneira, está tudo bem.
Quem estabelece na cabeça das crianças o preconceito são os pais e todos os que os educam; quem estabelece o monstro e o herói são os mesmos... e depois mostram aos filhos o vídeo do homem sem braços e pernas que até casou e agora é pai...

...cada vez percebo menos...


Apareçam

Rakel.

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