Houve um tempo, não muito distante, em que o quotidiano fazia-se pelas coisas mais simples. Dirão muitos que seria trabalhoso, difícil, mas era simples.
Havia tempo para tudo, crescer, brincar e aprender, tomar as responsabilidades que o tempo ia nos exigindo, mas sempre duma forma bastante comum. Os dias passavam-se nem mais depressa, nem mais devagar, sentia-se a passagem gradual, o entrar e sair das estações, os dias curto e noites longas, as gripes vinham com a chuva e o frio, junto com o chá e o Vick no peito e as mantas quentinhas.
Comprava-se a fruta, o peixe e as couves na praça, o pão quentinho na padaria e o Olá fresquinho na praia, comiam-se castanhas já na brisa do Novembro nublado e as sardinhas nos meses sem erres, o bolo rei vinha com prenda e fava. Dois canais de televisão e tínhamos filmes no fim de semana ou um passeio dos alegres, ou dos tesos, mas sem grandes problemas. Andava-se a pé, saía-se de noite sem grandes apuros. Dirão que me esqueço de uma data de coisas, de uma ditadura, dos salários baixos, e tudo aquilo que os capitães de Abril conquistaram...
...mas não me esqueci.
Conquista de liberdade não significa que se saiba lá muito bem o que fazer com ela, na maior parte das vezes, o que se entende por liberdade acaba por ser subvertido com o quero-posso-e mando. Um tipo de, eu posso isto porque me dá na real gana e tenho direito à isso. E aí bate a questão, liberdade, tal qual se entende, é um direito de qualquer pessoa, mas que acaba no momento que se intromete, atrapalha ou estraga a liberdade de outros.
Mudaram-se muitos conceitos, alguns, absolutamente necessários, o papel da mulher mudou, saiu do tanque de lavar roupa e tomou de assalto os tanques de guerra; saiu da mesa de costura e passou para as mesas de cirurgia, deixaram o ralhete aos filhos e advogam causas. Mudou o papel da mulher na sociedade, mas ainda não se atingiu a igualdade salarial. Assunto ainda a arrastar pelas décadas pós ditadura.
Há os dois lados, o antes simples, no tempo em que eu, como criança, podia confiar nos mais velhos, no polícia, em que a porta ficava no trinco e que se dormia de janela aberta. Hoje, já não preciso esperar 4 dias até que chegue a carta da minha irmã ou de um dos meus amigos (mas tenho que confessar, ainda me dá uma certa pena o desuso das cartas), hoje mando um e-mail, um sms e já está. Antes, esperava ansiosamente a saída de um LP dos Led Zeppelin, torrava a paciência do dono da loja todos os dias a espera que chegasse o almejado disco; hoje limito-me a pega-lo onde for mais fácil em coisa de minutos.
Agora é só facilidades aonde haviam dificuldades, o pão nos saquinhos de plástico e com o mesmo sabor, as castanhas piladas e congeladas o ano todo, assim como as sardinhas e o carapau seja qual for o mês. A ASAE mandou tirar do bolo rei a fava e a prenda, tudo em nome da saúde, mesmo que as escolas tenham amianto na sua construção. Temos mais canais com imeeeeensas novelas de faca e alguidar, um domingo miserável na companhia duvidosa de umas reboletes ao som pimba em palco no maior griso de praça pública. Haja Vick... A Manuela Moura Guedes, passou da menina que anunciava a programação à cantora do Foram Cardos, Foram Prosas à jornalista incomodativa... e hoje está aí num Quem Quer Ser Milionário. As voltas que o mundo dá...
Ensinamos aos nossos filhos a terem medos dos adultos, na infância deles, a palavra pedofilia não lhes-é estranha como seria para mim na mesma idade. Inocência... para aonde fostes? O simples complicou-se na simplicidade de poder fazer tudo e não ter tempo para nada. Há uma infinidade de máquinas que são para o nosso conforto e tempo não sobra. Falta imensamente, entalado em filas, portagens, paragens, prazos, relógios de ponto e de sinal de Internet. Uma falha de rede, uma falha de energia e vê-se o mundo parar em uma agonia, um medo brutal. É o papão do homem moderno.
Tão à frente andamos, tão esbaforidos chegamos ao final do dia, que até uma das coisas da nossa memória passa ao lado... e ainda bem.
É que das coisas deprimentes que este país manda lá para fora nos representar, haviam logo de escolher a coisa mais chunga, mais pimba e sem jeito do que aquela tipa esganiçada a cantar Quero Ser Tua... isso vai representar-nos na Eurovisão. O Ari dos Santos deve ter os ossos a revirar com tamanha parvalhice...
... que nunca façam uma versão portuguesa do Verão Azul... havia de ficar tão distorcido como tudo o resto que colocam as mãos.
Apareçam
Rakel.
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