"O nosso verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar de inteligencia sobre nós próprios"
Em total desapego às crendices gerais e os sortilégios populares tenho que dar a mão à palmatória: tão certo como todos os dias o sol surge no horizonte também assim, todos os dias tem que passar por mim um Porsche. O dia não corre bem sem que um desses popós passe por mim, vão lá entender. Mesmo vivendo na cidade em que vivo, pequena (mas catita) e ligeiramente distante dos grandes centros, todos os dias me cruzo com uma dessas máquinas, de anos diferentes, cores diferentes, modelos diferentes.
Como por agora, o trabalho exige que eu ande por toda a região centro, tomei a sério a minha visão de pendura no carro. O passar por vilas e cidades, lembrar delas no antes e vê-las agora no depois tem muito que se lhe diga. Mas o dia não começa sem ver um Porsche a passar, abrindo caminho, exibindo-se na minha frente. Mesmo quando passo por cidades que, antes do advento Comunidade Europeia eram centros fabris que geravam emprego, exportavam, mesmo com o velhinho Escudo como moeda de transação e agora estão em plena luta na UTI numa morte iminente e desenganada... o tal carro passa por mim, rasgando as estradas sinuosas da serra ou na imensidão das estradas abertas e sem movimento.
O Alentejo continua fazendo parte dos meus amores, a tranquilidade, com pessoas calorosas de trato e de simplicidade nas palavras. Comer no Alentejo é bom e recomenda-se. O pão, as azeitonas e o bom azeite na mesa, sem esquecer o vinho e os queijos; rir a bom rir com os casos contados "por acaso" e ver as cidades limpas, brancas e floridas.
Por outro lado, as cidades grandes desencantam-me cada vez mais, das pessoas com olhares insondáveis, posturas distantes e de poucas conversas. Mesmo sendo reconhecida a sua universidade como património do mundo, descobri que as canções são mesmo verdadeiras: Coimbra realmente tem mais encanto na hora da despedida. E não me deixou saudades.
Quando fui perto do mar... deixei o meu olhar perder-se na imensidão verde escura e um pouco bravia, batendo nas rochas, saltando alto e mostrando em jeito de saudação que esse dia ia ser de super Lua Cheia, que diga-se de passagem, passou-me ao lado. O cansaço de dias seguidos de trabalho intenso, de dias alinhavados uns nos outros, sem distinção se é dia de descanso ou não, acabaram por me nocautear. Mas acreditem, foi um cansaço bom, de conseguir alcançar objectivos, de passar limites de mostrar o lado combativo. Encontrei em lugares que adorei conhecer, revisitei outros que já não via há um bom tempo e descobri lojinhas interessantes. Desde as Chitas de Alcobaça até aquela loja Vintage em Tomar, com um móvel lindo do século XIX piscando o olho pra mim. Ou na Chamusca, numa casa de velharias comprar um volume de contos de Tolstoi por 2 euros.
E em cada cidade, em cada estrada, o Porsche passa por mim, lembrando que, por muito loucos sejam os meus devaneios... muitas vezes serão eles um lembrete que nada é impossível. E sinceramente, eu quero muito acreditar nisso. Que nesta UTI onde se encontra o país, ligado às maquinas de suporte de vida, haja uma cura, uma terapia que coloque de novo as cidades a laborar, a fixar as pessoas e fazer por gostar de estar cá. E quem sabe pro ano que vem, cá a Rakel não irá se passear num belo Porsche 911 preto... ou num Citroen dois cavalos... vá lá, clássico é clássico e não desmereçam o boémio 2CV.
Apareçam
Rakel.
* escritora belga, a primeira mulher eleita para a Academia Francesa de Letras.
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