Quando eu era pequenina, queria ser grande, saber ler e escrever e poder fazer tudo aquilo que não me deixavam fazer. Queria poder tomar banho sozinha (com quatro anos uma pessoa não tem grande voz activa no querer), ir para cama depois das 10 horas depois de ver um filme. Queria andar com flores no cabelo como via umas meninas mais velhas do que eu fazerem e saber os grandes mistérios da vida. Queria saber porque seria tão grande ofensa à deus o facto de preferir usar calças as incomodas saias. Queria deixar de ter que usar aquelas horrorosas botas ortopédicas e usar uns sapatos de salto alto ou botas de cano alto :)
Foram só 3 anos depois que consegui algumas conquistas: aprender a ler e escrever e tomar banho sozinha. No resto foram duras batalhas de vontades e castigos, porque até mais ou menos os 13 anos, hora de dormir era as 19 e 30 e não tinha papo furado nenhum. É bem verdade que até aos 5, 6 anos de idade gatinhava até atrás das cortinas da sala em "modo SEAL" e me escondia lá e via os filmes por uma nesguinha. Com o passar do tempo fui conquistando uns tantos avanços dentro do seio da família, conquistas estas que para muitos serão risíveis mas para mim foram suadas.
Um belo dia, vi um documentário sobre as guerras, e nele vi uma menina toda queimada a correr... e perguntei à minha mãe onde isso tinha acontecido. Ela respondeu-me que era no Vietnam, um lugar beeeem longe da terra brasislis e que a guerra por lá durava há anos. Eu fiquei pensando naquela menina, podia ter sido eu se tivesse nascido lá né? Podia ter sido eu a levar uma lambidela de Napalm e ter ficado toda queimada, chorando sem saber o que fazer e para aonde ir. Não lhe vi nenhuma arma na mão que justificasse o sucedido... e dei em pensar...
... e durante o resto dos anos fui pensando, conhecendo e entendendo pouco os mistérios e as compulsões da humanidade em magoar-se mutuamente por razões dúbias. Vi, pelos documentários, como o povo aclamou e depois linchou Benito Mussolini, como as revoluções se fizeram pela liberdade do povo oprimido, mas por outro lado esse mesmo povo era aquele que levava a conta maior nas baixas... danos colaterais de toda luta para a justiça diziam uns. Uma estupidez sem limites, direi eu.
Hoje, adulta e mãe de filhos já entrando na idade adulta, vejo o começo num novo milénio não tem sido uma das nossas melhores fases; estamos a regredir a passos largos. Podemos ter telemóveis com todas as funcionalidades possíveis, PDA, IPAD e o raio que o parta, a falta de memória colectiva tem sido uma constante. Não se aprendeu nada com os erros da história e a que se faz agora é em cima dos mesmo erros feitos antes.
As redes sociais, neste caso o LivrodaTromba, tem sido flagrante como visor do modo como as pessoas encaram tudo na vida. Há um renascer de mentalidades trogloditas que acreditam que, uma revolução a sério será aquela que faça brotar sangue. Os tais danos colaterais. E sinceramente, não consigo encontrar legitimidade num país abstencionista (só perto de 40% da população votou nas últimas eleições) que se sinta no direito de agora exigir sangue dos governantes que não escolheu. Porque deles... nem uma gotinha verão. Aposto aquilo que quiserem em como que, no caso das coisas realmente começarem a aquecer, vão todos fazer companhia ao José Sócrates em Paris... ou vão passar uns dias na companhia do camba Santos lá em Angola...
No dia que os portugueses indignados e abstencionistas resolverem ir para rua de paus e pedras na mão clamando por uma justiça que não merecem, quero saber se realmente serão capazes de olhar nos olhos do "inimigo", neste caso as forças da ordem pública, e atacar a matar. É uma pessoa como ela própria com família, pai, mãe, filhos ou namorada. E quando for atacar quem quer que seja, seria bom lembrar que é sangue a sério, é carne a sério...mas de outra pessoa, não do Cavaco ou do Passos Coelho. Nem sequer da Merkel. Esses estarão longe enquanto o genocídio corre solto. E não é um filme de terror, não é uma encenação de novela. É gente, é sangue sim de verdade e a pessoa ou fica inutilizada para o resto da vida ou nunca mais vive. Terão assim tanta raiva e frustração contida que se virarão uns contra os outros como ratos enjaulados?
Entrei por troca de ideias numa discussão sobre aquilo que acho a maior revolução que um país pode fazer: o da mente. Mudar os comportamentos e a forma de ver a vida, apoiando-se nos Movimentos Cívicos e com civismo mudar a expressão do país. Obviamente que sou a favor de tal opção, embora houve quem fizesse salientar que o que acontece é que nunca se faz uma revolução sem sangue. Como se fosse uma coisa absolutamente essencial para dar certo. Deu-me o caso de Cuba, onde a revolução mudou o país... sim, de uma ditadura de direita para a da esquerda. Falou-me das revoluções da Irlanda e da Escócia (ambas com séculos de sangrentas batalhas, uns por religião, outros também pelo mesmo e ambição que faziam os clãs lutarem entre si, mas isso ele esqueceu) e que tudo se desenrola assim mesmo.
Toquei no assunto da Grécia, onde a revolta popular feita de pedrada e fogo não mudou em nada a política do país, ou melhor, fez com que a extrema direita começasse a ganhar mais popularidade. As revoluções desembestadas em pancadaria indiscriminada dão oportunidade que os grupos radicais tenham possibilidade de fazer gosto ao dedo e colocar em prática tudo aquilo que viram nos filmes... e teremos praí protótipos de Rambo e Van Damme a la carte. Na Inglaterra, há uns tempos atrás, uma marcha pacífica que protestava contra a morte de um rapaz descambou em selvageria e pilhagem...e espalhou-se como fogo em palha. Nada tinha a haver com a marcha pacífica e tudo serviu para que um bando de oportunistas saíssem às ruas para descarregar as suas frustrações.
O que me choca é a facilidade com que as pessoas sente naturalidade em dizer que fariam de um tudo se pegassem um desse corruptos que levaram o país a bancarrota. A vontade quase animal de fazer mal e magoar a sério, "dar-lhe um tiro nos cornos", como se costuma dizer. E acham justificável o acto de matar e magoar como forma de fazer justiça, mesmo passando por cima de inocentes.
Quando eu era menina, sentada a mesa do jantar, pensava que quando no dia seguinte acordasse, ia ter crescido mais um bocadinho e ficaria com os meus pés mais perto do chão. Que ia poder fazer como os meus pais que sentam-se apoiados com os pés e não como eu, em cima da lista telefónica dando-me altura para chegar à mesa e balançando as penitas, claro sinal da minha infância.
Hoje, sentada enquanto escrevo este post, olho para os meus pés bem assentes no chão e miro a ponta das botas sentindo o chão a fugir-me dos pés em forma figurada. O medo de um filho meu voltar pra casa depois das aulas e ser apanhado no meio da turba que se desloca por fúria e energia mal direcionada e ficarem feridos. Fico apalermada com o desprezo pela vida seja tal, que descontar a ira dos governantes seja possível em qualquer coisa. Até naquela senhora de 60 anos, que volta pra casa depois do chá com as amigas e leva porrada da autoridade. Ou uma pedrada de má pontaria que atinja uma grávida.
Não me espanta já, que hajam pessoas que deitem fora os recém nascidos no lixo, como aconteceu em Guimarães semana passada ou que amarrem um cão ao carro e o arrastem pelas ruas...
Um povo que acha que castiga os políticos não votando, deixa nas mãos de uns poucos o destino de um país e só se castigam à eles mesmos. E nunca assumem esta responsabilidade na sua isenção.
... e este é o Inverno do nosso descontentamento...
Apareçam
Rakel.
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