O Lado Estranho dos Rituais de Acasalamento ou O Enamoramento



Civilizados como nos chamam na classificação humana (embora deixe muito a desejar em diversas ocasiões), na verdade nos regemos pelas mesmas leis básicas de qualquer outro animal. Somos por assim dizer animais civilizados e donos e senhores dos nossos ímpetos selvagens. Na lei da natureza imperam leis básicas: alimentar-se, encontrar e ter refúgio, defender-se e reproduzir-se. Portanto, no campo do reproduzir-se, o ser humano difere pouco das diferentes bestas que conhecemos. Tirando o lobo e algumas aves, a maior parte dos animais apenas se encontram e acasalam e depois cada qual vai à sua vida. O papel do macho passa pura e simplesmente pelo papel de doador de carga genética, a fêmea por outro lado cabe-lhe o papel de escolher o melhor macho para ter as crias. Depois ele vai embora e ela gera e cria a prole sozinha ou com outras fêmeas. Encontram comparativamente alguma semelhança??

Então somos civilizados, com uma massa cinzenta privilegiada carregadinha de neurónios, vestidos a maneira e prontos para medrar no mundo. Somos movidos pela necessidade de satisfação e bem estar, nem que pra isso se mate de trabalhar, gaste a saúde na borga  ou se estrepe todo por um bom momento. É assim que somos e nos movemos no mundo. Feromonas, visão mais ou menos aguçada, a voz e o tacto entram em acção na festa hedonista da satisfação. Até que chegou o advento chamado Internet e as coisas complicaram um bocadinho.

Se perguntarem (para ele ou ela) o que procuram no seu par ideal...fatalmente virá aquela máxima do "inteligencia, sentido de humor, honestidade e personalidade" que fica tão bem...se fosse verdade. Porque embora esses belos predicados sejam mesmo importantes, falta o aspecto central: a química. Já falei aqui antes da nossa quimigal interna que desata por dá cá uma palha a destilar feromonas quando bate os olhos numa pessoa que....sem saber porque... nos bate fundo. Nisso somos 100% animais.

Nos rituais de acasalamento civilizado entra tudo no jogo, porque saindo da esfera da Net é o cara a cara que fica valendo: o corpo, o cheiro, a voz o toque da pele... e querem lá saber se ela leu Kafka ou se ele vê filmes de produção independente!!! A vista come e esquece as boas intenções, os tais predicados ideais e depois que deitou a vista em cima e acelerou a pulsação... há que arranjar estratégias para segurar a presa. Entra o modo de caça e todas as suas artimanhas possíveis e digo mais, acredito que na maior parte dos casos o trabalho de sedução se faz automaticamente e sem estratégia: é uma questão natural de qualquer animal. E aí é o agradar mutuamente que entra em cena. Concordar em tudo, rir da piada mais sem graça, dizer que tem muitos pontos em comum e os mesmos gostos (catano, ela disse que gosta de Heavy Metal japonês... e eu que só pensava que esse povo fazia Sushi) e vão a força encontrando pontos em comum   (ele joga golf... e eu sei lá quantos buracos há no green...mas é chic né? ).

Nessa fase é tudo muito bonito....porque ambas as partes estão de acordo em tudo, e não são raros os casos, que passados um par de meses decidam que o idílio amoroso merece ser vivido 24 horas por dia... e vão morar juntos. E aí minha gente... é que começam a sério  a se conhecerem. Acaba-se o encantamento (baseado em agradar por agradar) e o mistério desfaz-se. E vem todos aqueles pormenores que acontecem e descrevi mais abaixo desgastando a relação. Porque ela um dia vai jogar na cara que o golf é mais importante do que ir ver a tia Alzira no hospital e que ela lê demais na cama e não presta atenção às necessidades dele e tá sempre cansada. As contas pra pagar, o desemprego, os amigos dele, as amigas dela, a inevitável família. Raros, raríssimos e dignos de menção honrosa são aqueles e aquelas que logo de caras conseguem de forma simples e honesta colocar as cartas na mesa sem subterfúgios.

Embora não acreditem, respeita-se melhor e aceita-se melhor quem é honesto logo de caras e que não façam verdadeiros tratados da tanga (a conhecidíssima conversa fiada). Verdadeiros seres mitológicos são aqueles que realmente se deixam enamorar pela pessoa em si e não pelo aspecto físico ou aparência. Acontece...mas são mesmo raros. Porque o que está a dar são os pavões... homens e mulheres que no ritual de acasalamento desdobram aquela cauda pejada de penas coloridas e brilhantes e abanam na frente do alvo em questão. Estufam o peito, desfilam mostram a pujança  de estilo.

Com a Net a coisa pia mais fino: a pessoa em questão destila os seus sentimentos e anseios com maior facilidade (uns mais que outros) porque a pessoa com quem se "relaciona" não o vê e nem convive diariamente ou esporadicamente. Mas aí é que o "eu" interior que vai se revelando pouco a pouco nas conversas e troca de opiniões, as suas reais opiniões...ou não. Nas redes sociais é um desfiar contínuo de "estou só e abandonado, triste da vida na minha solidão e sou um ser tão sensível e bom" que afasta de forma taxativa quem quer que seja. O Dor de Corno militante é alguém completamente sedento de atenção que chega a ser sufocante... e permanece sozinho por falta de filtro mental e de formas de auto proteção. Porque fatalmente há de aparecer alguém que vai se aproveitar dessa solidão sentida e dessa fragilidade (porque QUALQUER pessoa serve pra tapar o espaço solitário) e depois vira gato e sapato emocional de algum/a manipulador/a.

Se as pessoas fossem realmente honestas, se fossem realmente firmes nas suas convicções, sem precisar teatralizar as relações e as seduções...o mundo seria com gente mais feliz e mais esclarecida. O amor não é fácil, exige de nós a nossa maior honestidade, a mais ampla capacidade de saber dar e receber. Estar apto e aberto à isso é no mínimo o nosso maior desafio: saber aceitar as falhas e virtudes, saber respeitar o espaço e opiniões. Entender que o amor ultrapassa o campo físico e toca no nosso eu mais interior... que se sente acompanhado. Tirar da ideia que cio é amor... é fuga, uma forma cómica e despretensiosa de nunca deixar que realmente alguém único e especial toque lá dentro e veja as suas próprias fragilidades. Nem sequer é sedutora a promiscuidade... não há desafio num promíscuo/a, basta apenas estar lá na hora exacta.

Ao leitor deste espaço...  Miocárdio...dedico este post à ti. Acredito no amor, acredito que as pessoas se fossem mais honestas e não escondem-se atrás de tiques de sedução seriam mais felizes. E amor não é um brinquedo já todo pronto a usar.... é um Lego onde se montam as peças todos os dias e sempre tem lugar pra uma outra peça. Mas a base, continuo a afirmar, é a honestidade connosco e com o nosso par. Sem cedências, sem idealismos mas de mente e alma aberta. :)

Apareçam

Rakel.

Comentários

  1. Depois de tudo ler, começo exactamente como terminei um dos comentários ao anterior post:
    Amar sem medo é amar exactamente como se é... como o outro é...com a verdade de nós mesmos...na liberdade de sermos no nosso todo.

    Rakel, também acredito no amor, e na sua realidade, tal como a descreveste em algumas situações do que verdeiramente acontece, mas embora possa parecer que o idealizo, na verdade, apenas ainda vou acreditando (apesar de tudo) que aqueles "itens" acima descritos na frase são essenciais, e não tão diferentes dos descritos por ti. E mais, acredito-os serem aplicáveis à vida real...à vida mais plena.

    A frase inclui a audácia, para "assumir" sem medo a tal "química" (e às vezes é preciso coragem) a verdade, logo a honestidade, e, a liberdade, logo o respeito pelo "mundo" de cada um, que inclui as particularidades, o dia-a-dia, os amigos.

    E dizias-me: "este amor parece ser efemero", mas pode ser eterno e feliz e continuarei a acreditar no amor...no meu amor até que me desacredite.

    Ah! Só mais uma coisa, idealizar Rakel, pode ser, também construir esse tal lego e tornar uma construção firme e real.
    Vamos ver...se um dia destes derramo estas letras ou se com elas "fui feliz um dia" ...assim o espero.

    Agradeço muito o post Rakel ...do fundo deste Miocárdio.

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  2. Efêmero?? Há fita métrica ou balança capaz de medir acertadamente o que se sente??? Não acredito... A intensidade e a forma como se vive tudo não é mensurável. Longe de mim discutir seja com quem seja o modo como decide viver e ver a vida, apenas exponho da minha maneira e do meu ponto de vista daquilo que vou vendo e conhecendo. Não tenho nenhuma chancela profissional que me distinga como diplomada no assunto. Apenas vai-se vivendo, aprendendo e observando como as coisas se desenrolam. E a minha opinião tem tanta validade quanto a tua, porque fizeste a tua baseada nos teus modelos e vivências... e da tua personalidade. O ideal é relativo, assim como a pancada que se dá cá dentro quando damos de caras com "aquela" pessoa que nos balança os alicerces cardíacos... e não encaixa no ideal. A vida é irónica e mordaz.... e prega-nos surpresas, não é??

    Bjo e fica bem ok?

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