Há coisas que vamos deixando para trás, um adiamento constante e catalogado como não importante ou como prioridade vai sendo relegado dia a dia. Muitas vezes nos sentimos seguros do amanhã e das possibilidades em aberto e muitas vezes o amanhã dessas prioridades fica definitivamente inalcançável.
Umas vezes, a vida faz-nos pequenos lembretes, mais não sejam umas insinuações veladas de que algo deve ser feito ou que ainda não completamos tudo o que temos que fazer. Mas passado um tempo, quando não nos damos conta das indirectas, passa a dar-nos valentes chapadas na cara. Apanhei uma assim há um par de meses atrás.... uma morte estúpida de uma moça de 32 anos de idade, ainda com muito chão pela frente e com planos futuros. Caiu-me a ficha aqui dentro, desceu pela ranhura e deu sinal : o tempo tá a contar...
Dizer e aceitar constantemente que não, que depois logo se vê tornou-se um habito de uma vida toda, as precauções, os motivos encontrados, todos eles válidos, os planejamentos e os "ses" foram muletas durante tempo demais. E acreditem, largar o apoio das muletas não é fácil, ter que encarar colocar um pé na frente do outro sem um rol de impedimentos e de estratégias e encarar de frente o despojamento.... não é fácil.
No Sábado passado, uma mensagem dizia: Bora pra praia! Assim, do nada, as 3 e picos da tarde, mal eu ainda tinha acordado e a morder um sandocha recém feita e ajeitando ao mesmo tempo o almoço e vendo as mensagens . Primeiro pensamento que me veio à cachola: não dá pra ir... imediatamente arranjei uma data de desculpas bem organizadas e fajutas, hábitos não se perdem de uma hora pra outra. Depois dei um valente chute no meu traseiro (mentalmente é lógico, não há posição de ioga que permita isso) e topei a saída. Em menos de piscar de olhos, ajeitei o almoço, fiz a mochila, os mínimos dos mínimos e lá fomos nós, as três mais incongruentes personalidades femininas a caminho de uma praia em fim de tarde, porque já saímos daqui eram 4 da tarde...
Fizemos ouvidos moucos a meteorologia, essa boateira que diz que chove e depois não chove, que diz que faz calor e depois andamos a bater a queixada de frio... e lá fomos. Colocando de lado todos os "ses" possíveis, tentando descontaminar do cálculo e da lógica fui na onda... tenho que dominar mais a minha neurónia lógica e calculista Ceiça. Como a Fatinha não pode apanhar sol nenhum já que anda numa batalha velada contra uma doença parva e que já devia ter cura, ficar completamente vestida numa praia apinhada de gente ia dar barraca, por isso se escolheu zarpar para uma praia isolada. Mas eu deveria já ter adivinhado que na logística da Stela, uma praia escondida é mesmo uma praia escondida.
Vi-me como uma exploradora da National Geographic ou como aquele tipo da TV que vai para certos lugares inóspitos e vai comendo lagartas e bebendo a própria urina para sobreviver. Um caminho de cabritos que descia a pique, pejado de fetos, plantas picantes (e uma pessoa de havaianas e calções sofre no processo) e caniços. Estreito o suficiente para colocar um pé diante do outro, um ribeiro de um lado, mais picos e fetos a bater nas fuças do outro lado. Em fila indiana ia a Stela a frente com a maquina fotográfica a guardar a minha imagem de concentração na descida, os resmungos da Fatinha, inconformada com a falta de lógica do caminho... mas seguindo em frente...
... e dei de caras com o mar.
E só aí me dei conta de quanto eu sentia falta de vê-lo, de molhar os pés, o brilho do sol na água salgada, do cheiro e do som das ondas. Foi só uma horita de viagem de carro, uns minutos a descer até lá... e fiquei a matutar do porquê tantos adiamentos, tantos nãos, tantos problemas arranjados pela preguiça homérica de ir sem destino. Eu me habituei de tal forma de levar nãos e de promessas do "depois logo se vê", que me tornei justamente nisso mesmo, uma continuação do adiamento. É bem verdade que a palavra não foi a que mais ouvi na minha vida, mas não deveria ter-se colocado à mim feito chiclete na sola do sapato...
Acreditando como acredito na lei do retorno, não me espanta nada que cada adiamento que eu faça não resulte que as coisas que quero venham 3 vezes mais fortes mais tarde e com mais dificuldade. De cada vez que coloco uma lista de prioridades e de acções lógicas a percorrer, mais a vida me mostra que ando a perder tempo demais com aquilo que não domino, aquilo que não está na minha mão: o imprevisto. A imprevisibilidade da vida é uma constante. Acredito que aquela moça que morreu estupidamente não previa, pela lógica, deixar o mundo tão de repente, que ainda teria tempo para muitas coisas.
Foi um Sábado perfeito, numa praia perfeita, sem vento, sem calor demais, sem frio...meia dúzia de pessoas nessa praia perdida, deu tempo pra uma cochilada na toalha, de molhar os pés e tirar fotos. Depois de uma subida ainda com mais resmungos, picadas e risota... a recompensa de uma brutal gelado que serviu de jantar. E o mundo não parou, não pegou fogo nada em casa, nem nenhuma previsão funesta caiu sobre nós. Voltando já com a lua cheia iluminando o céu , recriminei-me por continuar, mesmo não querendo, a ter os mesmo tiques de adiamentos... e eu não era assim, uma atada mental. E fiquei pensando por que raios deixei que fossem as muletas a me apoiar no caminho e não confiei o suficiente nos meus pés...
... não há nada, nem ninguém que valha tanta contenção, tanta logística e tantos "depois logo se vê isso".
Apareçam
Rakel.
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