Mollis Corpus




Há algo de sagrado nos fins de semana e nos feriados. Fora das lides religiosas, do dia do descanso do senhor....mas o que chamo de dia meu. Ainda por cima, um fenómeno saindo das esferas científicas tem se revelado assíduo: o aconchego do sofá. Não é só comigo, felizmente mais gente tem sentido como que um apelo ao fofo, aconchegante e exigente de atenção do sofá. Mas precisamos ser fortes e não deixarmos que nos escravizem por muito que nos saiba bem. Lutar contra o Mollis Corpus*.

Neste último feriado, tinha dito que seria o dia em que não faria nada, mais ou menos como o Sabbath judaico, aquele que não se faz ponta de corno e fica-se aboborando a ver a erva crescer. Daí que não foi nada de mais acordar finalmente pelas 16 e picos, com um muito preocupado gato olhando pra mim. Meio atordoada com o desfazamento, mas com aquela letargia gostosa de ter dormido muiiito e sentir aquele abandono de corpo, de não ter nada de importante pra fazer. Aí toca o telemóvel.

" Então pah... vamos fazer uma caminhada???"

Depois de mais ou menos dois meses de inanição, de zero caminhadas...bem...

Eu ainda com a vista turva e a voz amarfanhada fui dizendo olá e tal e topei a caminhada. Pensei que, já que tinha dormido tanto, uma caminhada vinha mesmo a calhar pra dar sono mais logo na hora de dormir. Embora que, esta que vos escreve, não precise de grandes incentivos para dormir. Nem chás, nem comprimidos nem Yoga. É tiro e queda, mal deito a cabeça na almofada os olhos se fecham e caminho a passos largos pros braços de Morfeu, aquele tipo que nos leva pro mundo dos sonhos.

Combinada a hora e local de encontro, lá fui eu tentando me desagarrar do sofá, da moleza, da voz roufenha, do mau humor habitual que me acompanha o despertar e fui em câmara lenta, pedindo aos meus braços e pernas o favor de se mexerem. Comer, tinha que comer alguma coisa porque faziam mais de 19 horas que não comia nada, vestir-me e procurar a roupa de caminhada, os ténis e o raio da mini bolsa onde carrego o indispensável. Uma sandocha de queijo e presunto foi o menu e chegava.Isto tudo pensava eu, a fazer num ritmo aceitável dada a conjuntura física. E toca-me outra vez o raio do telemóvel, e fico a saber que estou atrasada e muito ao encontro. E foi a lufada de ar fresco na cara, já na rua, que recuperei o meu ritmo habitual de andar. Me sentia animada pela tarde ainda ensolarada, com a temperatura perfeita, sem vento e sem mostras de querer chover. Tudo encaminhava para um fim de tarde catita, de risos e exercícios cardíacos e muito campo, já que a Stela tinha dito que seriam estradas do campo. Na boa...

...saímos da mui verdejante e bela cidade de Torres Novas pelas 18 e 20 horas, caminhando alegremente em risota e "causos" das semanas, na minha inocência não sabia que caminhava inexoravelmente para a mais longa e louca caminhada. Porque o percurso delineado pela minha querida amiga foi planeado em base duma saída dela em bicicleta, daquelas com mudanças e cheia de perequetés. As caminhadas que fazemos são boas em vários sentidos, uma delas é que sempre é possível falarmos de coisas que precisam de mais liberdade de expressão, sem público e com a sinceridade que nos vai na alma. Aí ficamos bastante cientes das nossas diferenças de personalidades, que embora sejam assim, não deixam de ter uma coisa base que faz falta em toda as relações: o respeito mútuo.

E foi assim que descobri a faceta mais encoberta desta amiga de longa data, a sua faceta sádica. Porque só uma pessoa sádica se lembra de fazer uma caminha como aquela e nem avisa que é preciso levar mantimentos, tipo garrafinha de água ou alguma fruta. Nem sequer nos coloca sob aviso de que a caminha ultrapassa os habituas 8 quilómetros. Ribeira Ruiva, Casais do Pinheiro, Pedrogão, Lapas, Silvã...foi este o percurso feito. Estradas nacionais absurdamente estreitas e movimentadas (e a gente sem coletes), estradas de campo no meio de nenhures e eu já levando com uns pingos daquelas enormes nuvens negras encostadas à Serra D'Aire. Mas enquanto eu reclamava do absurdo de ter vindo sem os devidos preparativos, de explicar que um percurso de bicicleta se torna mais atraente e menor do que a pata, que só uma pessoa sem coração se lembra de chamar a  sua melhor amiga pra caminhar um via sacra daquelas depois de 2 meses de inanição... ela só me respondia que a culpa era minha que tinha me atrasado na hora do começo da caminhada.

Eram 21 horas quando telefonei ao meu filho, avisando que a mãe continuava viva, estoicamente lutando para chegar a casa e que jantassem sem mim. Isto ainda entrando pelo Pedrogão. Usei de estratégias psicológicas para poder ultrapassar o meu maior inimigo: a sede. Meti como meta a recompensa de uma imperial ao chegar a Torres Novas, na esplanada da Blue Moon para depois (sorte macaca) subir aquela ladeira infernal que me leva à casa. Eram exactamente 22 e 20 horas quando sentamos na esplanada, com as gargalhadas da D. Lurdes ao saber da nossa "brincadeira". Nunca me soube tão bem a imperial, nem os cigarrinhos que fumei (mesmo com a cara amarrotada da Stela que não entende puto disto). E embora ela diga que foram só 15 quilómentros à mim souberam-me a 20. Hoje é Sexta né? Amanhã é dia de Mollis Corpus, e tou-me nas tintas. Mas na próxima caminhada levo a minha mochila com os devidos apetrechos, até lanterna e caixa de primeiros socorros. Porque com a Stela, eu nunca sei bem aonde vou parar...

..mas não posso me queixar de rotina e monotonia com esta amiga   :P


Apareçam

Rakel.

* Mollis Corpus: corpo mole em latim, melhor maneira de denominar a preguiça sem parecer tão feio e muito distante da santidade duvidosa do Corpo de Deus, já que deus é imaterial e sem corpo, daquelas coisas que só faz sentido nos dogmas católicos.

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