Tenho manias, ou gostos por assim dizer. Gostos que nem sempre são tidos como habituais ou normais,mas nem por isso deixam de ser importantes para mim.
Sempre vi algo de mágico numa trovoada, o ar estala antes mesmo do céu escuro ser riscado por umas linhas brilhantes e flamejantes, ou do estrondo brutal que treme debaixo dos pés e faz vibrar os vidros das janelas. Há uma sensação primitiva de poder, de algo tão apaixonantemente visceral dentro de nós, que ao mesmo tempo se transforma em algo que mete respeito e admiração.
Acho que já vem de longe a semente implantada e regada amiúde dentro de nós que as tempestades, os trovões e relâmpagos sejam de temer. São os deuses, ou então um muito irado deus cristão que se zangou porque roubamos fruta da árvore lá do quintal do vizinho. Quantas crianças não ouviram quando estalava um trovão que... era porque o pai do céu estava mesmo passado da marmita com as nossas infantis atitudes???
Com o pragmatismo normal que sempre me caracterizou, sempre pensei que não seria eu a única que, de vez em quando, aprontasse alguma patifaria menor e que deus ou os deuses teriam mais que fazer do que se importar só pelo facto de ter cabulado uma aula. Convenhamos, nunca me considerei o umbigo do mundo...
Mas sempre foi uma das minhas maiores fascinações o assistir desse grandioso espectáculo que é ver uma trovoada. Entre as muitas possibilidades de que venha um raio que me parta, possibilidades essas poucas, se tivesse que ir desta pra melhor, não seria mal de todo que fosse dessa forma: brutalmente brilhante, quente e numa explosão de energia pura e natural. Antes isso do que levar com um cocó congelado caído de um WC avariado de alguma avião comercial dos que cruzam os céus. Não seria inédito, já aconteceu, mas imaginem a diferença: levou com um raio fulminante ou levou com um cagalhão gelado na testa...prefiro sem dúvida a primeira hipótese.
Sábado passado, depois devidamente instalada no sofá e de ter lido e dormido de forma sistemática e intercalar, (e expliquei ao meu filho que uma mulher nunca ressona, mas sim, respira fundo com convicção) vi que tinha que obrigatoriamente sair pra comprar comida para o meu bichano. Tarde e más horas, mais tarde do que más horas, seja dita a verdade, quando me dei conta que o tempo estava virado. E sabe quando a gente sente no ar??? Aquela sensação de antecipação que formiga na pele?? E lá riscou no céu de fim de tarde um raio no meio da massa de nuvens cinzentas e carregadas de água e energia, um raio que se dividiu em dedos flamejantes...
Estanquei na calçada e não de medo...senti no ar o movimento do vento nos cabelos e o cheiro quente de energia pura.... e sob os meus pés a vibração ondulante do trovão.
Uma vez fiquei uns segundo meio cega, porque um raio explodiu mesmo perto... e eu estava na janela de uma casita rés do chão a ver a chuvada e a levar com o vento e as gotas de chuva. O cagaço do momento foi substituído por um UAU!!! Meio apardalada e com os olhos a ver círculos brilhantes em todo lado em vez de rostos e cores, levei um sermão que me entrou pelos ouvidos a 100 e saiu a 200...
O medo tem a capacidade de tolher a vontade, o sentido de aventura e descoberta. Ok, é certo que o medo faça parte do nosso instinto natural de sobrevivência. É bom ter um bocado de medo de algo, e admito que tenho medo de uma mão mal cheia de algumas coisas. Mas faço por lutar contra esses medos. E nem seria fiel à mim mesma se não admitisse que meter uma pata na poça de vez em quando seja uma parte da minha colorida personalidade. Mas não tenho medo de errar, mete-me mais medo insistir nos erros. Mas nunca me vi tolhida ou limitada por medo de algo que ainda nem fiz ou conheço.
Mas o medo assim existe, medo das próprias falhas antes sequer saber se é capaz de algo. É o medo de ser mãe ou pai (porque não sabe se pode lhe dar tudo o que precisa, mesmo que a melhor coisa que possa dar ao filho seja amor), medo de falhar num projecto que tem imensa vontade de fazer parte ou como ontem: medo de falhar num teste. Uma rapariga, por não ter muito tempo para estudar, sentindo a insegurança do que sabia, atirou o teste pra cima da mesa e saiu porta fora colocando defeitos em tudo: na professora, no teste, no nível das aulas.... quando o problema todo era só dela e dos seus medos e inseguranças. E o brutal medo de falhar. Não há pior censor do que nós mesmos não é??? Até porque sabemos bem os nossos próprios defeitos e sabemos cutucar onde dói mais. Somos de uma auto-exigência pra lá do necessário...
... a vida é curta, passa num sopro, vivendo a vida cheia de medos, é viver pela metade.
Acho que tenho a dose certa de auto-indulgência que me permite rir de mim mesma nas minhas argoladas como me perdoar e me aliviar a alma com pequenas concessões......tipo, um chocolatito ou um bom banho de espuma :) ahhhhhhhhh pah, se já está dada a argolada e não tem máquina do tempo pra voltar atrás, pra que raios terei eu que me martirizar???
Uma trovoada é sempre metafórica, pode ser a imagem das nossas paixões e ambições, das nossas lutas internas. Seja qual for a tempestade que nos alberga na alma, uma coisa é certa: quanto mais tempo é ignorada, mais ela cresce. É deixar o vento bater nos cabelos, levar com a chuva na cara e abrir os braços e sentir o formigueiro na pele antes do trovão. E viver o melhor possível com tudo isso.
Apareçam
Rakel
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