Os Imortais



Longe de mim denegrir a memória digna e cheia de predicados de figuras ilustres e importantes, aliás, tenho alguns personagens da história da humanidade como "ideais" de pensamento. São daquelas pessoas que, souberam de uma forma ou de outra traduzir tão bem aquilo que cá dentro faz tanto sentido e não conseguimos deitar cá pra fora. As vezes fico pensando que sejam mais dotados na arte das palavras do que propriamente inovadores do pensamento. Sabem ajustar as palavras e as frases de maneira que soe bem e que fique cá dentro demarcado.

Como já disse algumas vezes, ler é uma necessidade para mim, nem que seja uma página por dia, mesmo que não seja só uma, mas pronto, tenho que ler.  Não tenho autor que seja mais ou menos da minha predilecção e tento abranger vários estilos e linguagens. Acabo sempre por encontrar alguma coisa que me faça sentir apelo aos livros e ao que lá se conta. Muitos deles contam a vida de outros tantos iluminados e idealistas, aqueles que souberam dizer de forma exacta e acutilante o que sentimos. É facto. O que me dana é o endeusamento.

Lá que uma pessoa tenha capacidade de escrever, de teorizar e de fazer-nos pensar sobre nós mesmos e a vida que nos rodeia, tudo bem, mas isso não faz dele um ser sobrenatural e dotado de uma aura mágica e divina. São mortais que passaram e passam pela vida com as mesmas necessidades que eu ou de quem me lê agora. As necessidades de quem vive e luta por isso. Todos nascemos nus, chorões, dependentes e a necessitar de fraldas limpas, leite e carinho. No decorrer da vida, as mesmas coisas que se faz ao crescer, aprender e trabalhar. Amar, sofrer, chorar, adoecer, curar, ficar com raiva e depois rir. Somos feitos dessas porções mais ou menos doseadas na vida. Seja quem for. Invariavelmente acabaremos um dia por morrer, temos essa carga perecível chamada de corpo físico, que cada dia que passa, por mais cuidados e conservações acaba por dar de si.

Ninguém é perfeito, longe de nós está esse estatuto abstrato de pureza máxima só dedicada aos anjos (aos que não caíram) porque santos... é um assunto controverso até mais não. Portanto, quando colocam no alto uma personagem que de certezinha até arrotava como nós, que muito provavelmente acordava com mau feitio, que certamente escarafunchava o nariz em pleno exercício de pensamentos ociosos (mas na quietude do lar), faz-me impressão fazê-lo imortal e paradigma do Universo.

Mais impressão ainda me faz quando, uma celebridade já falecida há que séculos, já os ossos viraram pó, portanto inacessível para consulta, são supostamente colocados com pés de barro. O que me vai ou não fazer diferença se Leonardo da Vinci fosse ou não gay? As suas obras seriam menos apelativas? Teria assim menos talento?
Geralmente, uma forma de provar que são pessoas com algum defeito é sempre pela mesma via: a dos comportamentos sexuais. Ou melhor, as suas escolhas pessoais. E os que sempre foram imortais acabam por levar com a chancela de "estranhas aves raras" que nem eram assim tão bons. Decidam-se, ou eram uns suprassumos  ou eram gente como nós.

Há uns boooons tempos atrás, descobriu-se que François Mitterrand teve uma filha ilegítima. Já em final de mandato, o ex-presidente da França assumiu essa paternidade ilegal sem nenhuma vergonha. E foi mais o resto do mundo hipócrita e muito moralista que levantou o dedo acusatório e apontou-o como um homem sem escrúpulos. Que atirem a primeira pedra quem nunca fez um erro na vida, nem algo que saiu das normas. Mas Mitterrant, na minha opinião,foi um homem mais honesto e cumpridor do seu lado paternal que muitos outros. Mesmo sendo uma filha nascida fora do casamento legítimo, reconheceu a menina como filha e registrou-a com o seu nome. Isso sim faz de uma pessoa alguém acima dos outros. Embora eu continue achando que filho não é algo de mal, seja legítimo ou não, ele poderia ter feito como muitos fazem: não assumir a sua cota de responsabilidade. Mas os jornais gostaram imensamente de fazer a sua campanha normal pelos bons costumes e moral impoluta do costume. Ele governou a França, pela vontade dos franceses de 1981 a 1995, isso alguma coisa quererá dizer. Talvez que fosse competente não é?? Portanto, para aquilo a que se propôs como político e estadista, cumpriu a sua missão. E como homem com defeitos e qualidades fez o que pôde.

As grandes personalidades, nem são aquelas que brilham com sorrisos perfeitos diante das objectivas e recebem prémios Nobel. Nem são aqueles que cativam o público com discursos apaixonados e inflamáveis ou as que estão na moda. São aquelas que conseguem fazer o correcto, que assumem as suas paixões, os seus erros e falhas. Hoje é normal uma personalidade qualquer fazer algo de profundamente disparatado e depois aparecer nas revistas... o máximo que consegue é ser chamado de "ganga maluco". Imortalizados mais pelas incoerências do que pelas suas boas atitudes. Muito poucos saem das suas zonas de conforto e dos seus nichos para fazer a diferença.

Quando o furacão Katrina destruiu grande parte de Nova Orleans e deixou um rasto de morte e destruição, pra variar, alguns músicos se juntaram e fizeram músicas em homenagem às vítimas da tragédia. Normal... fica bem... e fazem carinha de pena. Bandas míticas como os U2 se juntaram com os Green Day e fizeram tema para ajudar os desalojados. Bonito.
E justamente uma daquelas pessoas por quem não tenho uma simpatia por aí além, daquelas que não me diz absolutamente nada, nem como actor, nem como pessoa, arregaça as mangas, e vai ajudar. Sean Penn pegou no pesado, sem glamour, mas fez mais do que um video clipe com uma música catita. Provavelmente ao falar de Sean Penn, vão associar como o primeiro marido da Madonna ou algum filme. Mas uma pessoa é mais do que isso né??

Imortais não existem, será apenas sua lembrança que perdurará, mas mais do que apenas verborreia e ideias luminosas é arregaçar as mangas e fazer algo de útil e palpável. E cada pessoa que consegue fazer algo mais do que apenas emprestar uma imagem, mas que faça uso da sua força e vontade e empenho, há de ficar imortalizado não em imagens ou num livro de capa dura. Há de ficar na lembrança de quem ajudou. Qualquer um, simples anónimo. Ninguém é perfeito, ninguém está longe de errar, mas assumir, corrigir e tentar ser melhor faz a diferença entre as pessoas. É antigo, faz-se pouco uso, mas ainda é a melhor parte que podemos dar de nós.

Apareçam

Rakel

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