Pode parecer lugar comum, mas ainda sou do tempo em que brincar na rua era tão normal como respirar. Depois das aulas e dos "deveres" feitos, era correr pra rua, pegar no brinquedo preferido e gastar energias até a hora do banho, jantar e deitar. Vida simples e escorreita de criança, sem mais preocupações do que a lição bem (ou mais ou menos) estudada e a próxima "arte" a aprontar com a cumplicidade dos amigos da rua ou do bairro.
Há coisas da infância de cada um de nós, que guardamos com carinho, por muito problemática e dura fosse, havia sempre um meio de conseguir divertir-nos com muito pouco. Desde o clássico tocar campainha e fugir, roubar fruta no quintal do vizinho ou mesmo jogando Bafo. Jogo do Bafo era propício não só há inúmeras discussões como o completar finalmente a caderneta de cromos...
Jogar Bafo tinha a sua arte, levava tempo a conseguir virar os cromos todos e a técnica está aqui nesta figura de baixo a explicar.
É verdade que muitas vezes, no afã do jogo ficávamos em posições assim pro lado do estranho, justificando largamente o facto de ter passado grande parte da minha vida com calças e ter ganho finalmente, com muita luta e briga o direito de colocar no canto do roupeiro os vestidinhos.
Mas não pensem que só me interessei por coisas arrapazadas não, aliás, indiretamente meus pais são culpados de eu ter me interessando por coisas menos "menina cor de rosa". Se me deitasse no divã de um psicanalista, a primeira coisa que lhe diria é que, sou como sou por culpa dos meus pais. Eles não me deram o boneco aí de baixo, o Feijãozinho :(
Eu fiz a campanha habitual quando reivindicava algo que gostava: chorei até aos limites da desidratação, amuei e fiquei sem falar de outra coisa que não fosse o raio do boneco. Fiz greve de fome (que fatalmente acabava por comer de duas maneira: na tromba e o que tinha no prato) e até cheguei perto meu objectivo... se o meu padrinho não tivesse viajado. A razão que me deram era tão espatafurdia como tudo que saía da boca dos meus pais: o boneco tinha uma cara idiota.
Vão lá entender os pais né?? Se brincava na rua de peteca ou soltava papagaio de papel (as pipas) era "Maria Rapaz" , "Não sei o que hei de fazer contigo", "Custa alguma coisa voltares pra casa menos encardida?" Por outro lado, se queria uma boneca, das duas uma: ou não me davam por pura sovinice ou então me davam mas não deixavam brincar que era "pra conservar por mais tempo". ?????????????????????
Mas porra! brinquedo não foi feito pra brincar??? Mas lá vinha a ladainha que "no meu tempo a gente não tinha assim tantos brinquedos, e que antes da alvorada cortavam lenha com um machado rombo e alimentavam o gado antes de andarem 20 Kms descalços por cima de meio metro de neve pra irem pra escola e que ainda por cima levavam reguadas nas mãos por errarem a tabuada." Affff... dizer isso tudo não diziam, mas chegava perto.
Estes dias andei a lembrar de coisas da minha infância longínqua mas não esquecida. Das guloseimas com que andava sempre a me entupir e das brincadeiras favoritas.
Deu saudade sim, mesmo com os ralhetes, as minhas birras monumentais, os joelhos desfeitos em quedas da bicicleta, os zeros a matemática (e depois o fatal castigo) as diarreias por causa de comer fruta verde, das brigas de rua, das amigas que hoje eram e depois já não eram, da alegria antecipada do aniversário, do Natal e do orgulhozinho arrogante de ter passado de ano na escola. Do cheiro dos cadernos novos, o cheiro do banho com o sabonete de Rosas da Phebo depois de ter corrido o bairro todo de bicicleta, a sensação deliciosa do pijama no corpo moído. Mesmo que depois tivesse que enfrentar um prato de sopa cheio de creme de ervilhas (a minha mãe sabia que eu odiava a maldita sopa) e o fatal sermão do "menina não pode ser assim". Porque todas as minhas preocupações dessa época se resumiam à isso: aos ralhetes, os zeros a matemática, os joelhos esfolados ou uma amiga que se fez pra toda a vida.
Tinha ainda por viver uma data de sonhos e uma inocência que já caiu em desuso. Era uma inocentona aos 15 anos, nada comparável às meninas de agora que se arvoram em mulheres. Passei da infância à adolescência despreocupadamente pensando que o mundo era grande e nele tudo seria possível com esforço e dedicação. Nem de longe pensava eu que o mundo era e é feito de oportunistas, vigarices, políticos e demais seres venais. Pensava eu que, no dia que eu fosse mãe, que quando tivesse os meus filhos, pudesse oferecer à eles uma segurança de vida, ensinar a lutar por um sonho ou objectivo para lutar com honestidade e dignidade. E hoje, olhando para o mundo tal qual se me apresenta, só posso dar aos meus filhos uma coisa: a vontade de não desistir, de saber adaptar-se às bofetadas da vida.
E como mãe... penso que há muito mais a oferecer do que o meu amor incondicional e o meu total apoio, seja qual for o caminho que eles escolherem. E o maior presente que poderiam me dar... seria dizerem-me que são e estão felizes.
Apareçam
Rakel.
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