Com uma caneca tamanho jumbo cheia de chá de menta, só pra acompanhar uma bolachas recheadas de doce de groselha e cobertas de chocolate, a filosofia de sofá rolou solta. Não há nada que puxe mais para estes hábitos do cogito ergo sum*, do que o frio lá fora e a lareira acesa e os apetrechos acima citados. Corpo aconchegado pensa melhor...
Daí que fiquei cá a pensar com os meus botões sobre o fado ter se tornado Património Imaterial da Humanidade. Estamos mais habituados a que as coisas mais concretas, sentidas ao toque, carregadas e avaliadas por comparações métricas e temporais ganhem esse estatuto. Daí que a substância tenha outro valor do que um número matemático, que passe a ter em conta aquilo que não pode ser mensurado: a alma.
Porque a música, seja ela qual seja, é uma manifestação de algo também imensurável, os sentimentos e estados de alma. Poder traduzir de forma mais subtil e cabal o que vai cá dentro em redemoinhos de pulsões e vontades torna-se complicadito. Só mesmo quem sente as coisas é capaz de encontrar rima em outra manifestação artística da verbalização.
Afirmo que não sou grande apreciadora do fado, não por falta de quem me apresentasse logo nos primeiros anos de vida...pois não foi assim. Numa casa de pais portugueses da geração que se tornou imigrante no Brasil, é de calcular que tanto pais como meus avós paternos tivessem a natural queda para o fado. E quanto mais longe da pátria (dizem) mais se tornam queridos os símbolos da cultura mãe. Apenas não tenho queda para o fatalismo, fujo a sete pés da desdita, da tristeza militante da dor de corno e da saudade dolorosa.
Fatalismo pra mim é, no dia que acabo de secar e arrumar o meu cabelo e ele fica lindo-de-morrer-esplendoroso-magnífico, eu saio e, sem chapéu de chuva, cai a maior carga de água dos céus... algo de diluviano. Isso acontece com uma precisão matemática tal, que me pergunto se alguma deusa invejosa das minhas madeixas sedosas faz isso de propósito... :)
(projecto Amália Hoje, aqui Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell a cantar um dos temas que a Diva imortalizou)
Aí, entre um bolachinha e outra pensei no valor que damos às coisas que realmente importam, aquelas que nem dá pra avaliar num perito em arte, num qualificado conhecedor de gemas transparentes... aquilo que muitas vezes se traduz num pequeno gesto e num saltinho descompassado dos alicerces cardíacos. Os estados de alma.
Pode alguém avaliar a alegria? Tamanho, peso e altura, a antiguidade ou importância social? Não há nada que avalie a minha sensação de conforto entre o calorzinho bom da lareira e chá quentinho. Nem em como me sinto miserável de pés frios e estômago a roncar de fome por ter pulado uma refeição (culpa claro da desmesurada burocracia e filas intermináveis), portanto, cada qual tem a sua própria definição. Daí não que não seja nada de mais a música ser uma das maiores expressões da alma. Mesmo a mais brejeira ou rasca, demonstra bem o tamanho dela e das suas vertentes. Cada qual demonstra aquilo que sabe e sente da forma que consegue, daí que a substancia varie de género em género.
Por outro lado... mesmo que um cataclismo destrua as pirâmides do Egipto, que a Acrópole de Atenas se desfaça, o material, palpável e mensurável perde-se. Ficam fotos e documentos. Mas não há quem, mesmo só assobiando, não arrisque a tentar um fado, um sambinha ou uma canção de ninar...
O que nunca se perde é a memória musical e a substancia intangível mas poderosa da arte maior da alma... expressar-se por sons.
E mesmo com aquela carados meus filhos de " ó meu deus... ela vai arrebentar os vidros" , canto quando a minha alma apetece. Único espectador desta façanha é o meu gato, não sei bem se por solidariedade ou se pensa que a dona precisa de atenção redobrada...
Apareçam
Rakel.
* Cogito ergo sum é : Penso logo existo. Descartes, um filosofo francês que colocou em causa a sua própria existência, descobriu que afinal até existia pelo simples facto de pensar...se penso existo. O Discurso do Método era um livrinho obrigatório no meu tempo de estudante onde, com uma linguagem mais simples e mais facilmente visualizadora, Descartes falava do conhecimento e do exercício de pensar... o que chamamos de filosofar. A frase completa é: Dubito, ergo cogito, ergo sum. Traduzindo é mais ou menos isto: Eu duvido, logo penso, logo existo. :)
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