O Nevoeiro


O ar frio da noite húmida e de nevoeiro fazia com que ele puxasse ainda mais para cima a gola da camisola de lã e aconchegasse melhor o fecho do blusão. É verdade que tinha saído apenas para ir ao Centro Comercial comprar cigarros, mas a nova paixão levou-o um bocadinho mais longe. Nem tanto como isso, afinal, a velha muralha de antiga fortificação fica dentro da cidade, oferecendo aos seus visitantes a vista do Tejo e das cidades distantes, apenas reconhecidas pelas luzes aglomeradas. 

O piso de terra grossa e caminhos feitos de pedra estavam molhados e abafavam os passos no jardim solitário e nocturno. Mais além, ele pode ver um casal de namorados, enroscados em carícias e palavras doces, imunes ao frio, mas velados pela imensa Lua cheia enrodilhada em névoa e meia luz. Nada mais se ouvia do que o murmúrio da água no lago e o silencio da noite. Deu um par de passos, tirou do bolso o maço de cigarros recém comprado e acendeu um...  e pôs-se a pensar qual o melhor ângulo para as fotos.

Embora tivesse parado para acender o cigarro, deu-se conta que o som de passos continuava, coisa estranha, já que o tal casal continuavam embrenhados neles mesmo alheios ao mundo. Mais um par de passos e nova paragem e o mesmo sucede-se. Passos que davam a entender serem mais do que uma pessoa. Eco? pensou ele, mas não tinha dado conta antes quando entrou no jardim. Parou por alguns segundos e ouviu ainda o mesmo restolhar de passos na terra molhada. Girou sobre ele mesmo, tentando captar de onde viriam os passos...mas nada mais viu do que a silenciosa estátua de D. Afonso Henriques orgulhosamente no meio de flores e relva.

Encolheu os ombros, entalou o cigarro entre os lábios e começou a focar um determinado plano, onde as árvores reflectiam a estação: umas desfolhadas por completo, outras resistentes ao frio, esperavam pela invernia com o mesmo orgulho do antigo Rei. A foto ficou com um toque lúgrebe ao torna-la em preto e branco...os tons de cinzento davam às sombras o tom gélido da solidão e do frio. 


Foi ao pensar nisso que deu-se conta de um frio mais intenso lhe subia pelo braço direito, o toque de uma mão, fria, gelada, que repassava através da pele do blusão, da camisola de lã e chegava-lhe à carne. Olhou para o braço num arrepio intenso e viu... seria uma mendiga? Um xaile enorme e escuro cobria a cabeça, as saias arrastavam no chão, e uns pés descalços e enegrecidos de sujidade calcavam a terra molhada.

" Boon ome..has de visto Pedro??"

"Desculpe?" respondeu sem entender o que a rapariga dizia. Olhou bem e na primeira conclusão julgou ser mais uma cigana romena, das muitas que vagueiam pelas cidades em busca de trocos para uma refeição. Mas olhou com mais atenção. Os traços finos de rosto, a palidez e os olhos angustiados, claros e tristes, a mão gelada apertando cada vez mais o braço dele... o frio entrava pela carne e chegava ao ossos. Meio por desconfiança, meio por precaução, olhou ao redor a espera que fosse uma distracção para um assalto.

Começou a praguejar entre dentes, pois só mesmo pela pura diversão de fotografar esqueceu-se do perigo de lugares escuros, solitários e sem companhia de quem lhe pudesse acudir. Mal voltou o rosto para tentar desvencilhar-se da mendiga, deu-se conta que ela já lá não estava. Nem sequer os pés nus deixaram pegadas. Mas... aquilo aconteceu não é verdade?? O frio daquela mão pequena e suja ainda deixou o rastro de frio gélido no braço...um frio penetrante como um desgosto enorme, uma perda profunda.

Decidiu que eram mais do que horas de ir-se embora, que já estariam em casa a pensar que comprar uns cigarros não demora assim tanto tempo...e foi só quando entrou no carro. Sim, só quando entrou no carro e viu a capela ao lado do jardim, onde do lado de fora se vê a urna fúnebre, algo fez-lhe o coração bater mais forte. Conta-se na cidade, que naquela capela foi sepultado um dos valorosos soldados de D. Afonso Henriques. Esse soldado recebeu valores e graças do rei... mas ele enamorou-se e casou-se ( ou viveu em concubinato) com uma bela moira de olhos claros. Mas nem mesmo na morte o amantes tiveram a sorte de ficarem juntos. Diz-se que ele tem sepultura dentro da capela...e ela na parede exterior.

Ele acendeu um outro cigarro e ficou-se a perguntar.... seria?? Não... claro que não...mas poderia ser não é??


Foto: José Freitas

Local : jardim das Portas do Sol em Santarém

Conto: Rakel

Apareçam

Comentários

  1. nem sei o que dizer... começa mas é a escrever um livro... e rápidamente!!! (estou a afalar muito a sério...)

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  2. ....ok, está em andamento...vamos ver no que vai dar:) e obrigada pela visita aqui no cafofo...

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  3. ALELUIA!!!!!!!!!
    Estava a ver que nunca mais vinha um dos famosos contos da Rakel.
    E estás , como não podia deixar de ser, APROVADA!

    Agora, pegando na tua resposta ao Anónimo, o livro que "está em andamento", mas mais lento que a saída da crise. Há quanto tempo é que eu ouço isso?

    Jinho

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  4. :( catekista...pensas que isto é assim? escreve e já tá?? Não... aliás, a escrever ando eu sempre que há uma nesga de tempo e como para mim prometido é devido, pode demorar mais um bocadinho, mas que vai ver a luz do dia...isso vai.

    bjo e boa semana!

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