Tenho uma certa embirração com o significado da coragem. Dignificar um acto que sai dos cantos escuros do medo e receio, realmente é de se louvar. Mas o uso que dão de modo geral é um bocado generalizado.
Porque somos assim um bocadito puxados para o lado da tragédia. Há um gosto peculiar pelo sofrimento pessoal, pela perda e pouco se dá a valorizar ao que temos de bom, bonito e bem feito. A gente se pega com unhas e dentes às chatices, cutuca com um palito de dentes as nossas pequenas dores e faz disso a nossa bengala para as horas de pata metida na poça.
Não vou ficar aqui de dedo em riste apontando os outros, cá "je" também tem destas coisinhas miúdas, de me enrolar com a minha auto comiseração e ficar de beiçola caída com pormenores que à mim me chateiam mas passam ao lado de todos os demais. São cá coisas minhas. Banais, parvas e sem jeito.
Por outro lado, desvalorizo por completo todas as mostras de coragem feitas nas revistas cor de rosa que vive da tragédias que cada um cava por conta própria e enaltecendo os dramas familiares de gente famosa (mais ou menos, hoje a fama tem vida curta) porque de dramas pessoais está o mundo cheio. Anónimo e corriqueiro. É a doença pessoal, é o desemprego e saber como se desenrascar, são os desvairos amorosos, separações de casais e toda a panóplia de situações que cabem dentro da vida de qualquer pessoa.
O que é na verdade coragem? Ter "bagos" para aceitar que fez a maior cagada desgraceira com a própria vida e seguir em frente tentando fazer melhor? Será coragem ter a capacidade de dizer NÃO ao que está mesmo mal, mesmo que isso seja arriscado em todos os sentidos? É apostar num tratamento de risco para tentar contornar uma doença? Ou pelo contrario, saber que o tal tratamento pode apenas dar mais uns 6 meses e todos os efeitos colaterais complicados e.... pegar o touro de frente e aceitar fazer e viver o melhor com o tempo que resta? Coragem é um assunto sério e muito pessoal. Exigente e muito impreciso, pois só quem calça a bota sabe bem onde lhe aperta o calo.
Então vamos lá ver: somos um bocadito pro lado do trágicos, puxados para o dramalhão pessoal, onde uma borbulha vulcânica no rosto representa o equivalente à uma bomba de gás sarin na nossa vida. É a barriguinha proeminente de cerveja, o alargar das ancas (pra não dizer que o rabo tomou para si todas as calorias) ou no meu caso actual, tentar parar a perda de peso, um tudo ou nada um regresso ao passado. Mais de 90% das vezes embirramos connosco, somos exigentes na comparação geral e perdemos pontos. Vá lá... há quem consiga viver num verdadeiro estado de graça e paixão com a sua vaidade, raiando o narcisismo de culto do "eu me amo".
O que me faz repensar nas queixinhas que ouço fazerem (mais aquelas que faço comigo mesma) é na coragem de quem não conheço de lado nenhum e que vivem coisas... que verdadeiramente não consigo alcançar a magnitude.
Ontem tive que me deslocar ao Centro de Emprego aqui da cidade por causa de um... papel ( a minha vida burocrática daria um livro!) e pensando que de tarde estariam em qualquer lugar menos ali... dei de caras com montes de gente com cara de "ai meu deus que nunca mais me despacho disto". Consegui a custo arranjar um lugar pra sentar numa das filas mais afastadas do guiché. Ao meu lado uma menina prai dos seus 18, 19 anos de idade, com a senha na mão, mais uma catrefada de papéis, tal como o resto, aguardava a sua vez. Uma miúda como todas as outras, gira, jovem com toda a vida pela frente pra fazer de um tudo.
Eis senão quando a rapariga solta os papéis todos para o chão, começa a gritar a agitar a cabeça e ainda sentada, abraça as pernas até encostar ao peito... e a gritar, agitar a cabeça e a balançar nessa posição fetal...
Beeeeeeem.... fez-se um silencio de ouvir-se os tiques-taques dos relógios, o segurança naquele vai -não - vai de levantar da mesa sempre de olhos postos na mocita agitada ao meu lado. Fez-se uma ilha de espaço e alguns comentários parvos do costume. Eu apenas agitei a cabeça em direcção ao segurança dizendo que estava tudo bem... mas de olhos pregados na miúda, não fosse ela bater a cabeça em algum lado. Fiquei lá durante uns loooongos dois minutos a ver a miúda perdida num dos ataques do Síndroma de Tourette. Quando a coisa esmoreceu ela voltou a sentar-se normalmente, jogou o cabelo para trás e disse: "Já acabou... está tudo bem!" e começou a recolher os papéis e a esperar a sua vez.
Não será preciso dizer que tive espaço para esticar as pernas, poder levantar e andar... porque o que aconteceu com a mocita permitiu uma ilha de espaço. Não me venham com a conversa de "todos diferentes, todos iguais" nem na "tolerância" nem de amor fraterno e natalício nem mais porra nenhuma.
O povo ficou tal e qual ficariam lá na Idade Média, a temer o que não sabem e o que ignoram, tendo pena da menina.
Eu admiro a coragem desta miudita que, num mundo que se exige a perfeição em vários aspectos, encara como consegue as necessidades de quem precisa de estudos, um trabalho, amor e UMA CHANCE pra mostrar o que vale. A vida dela com esta doença é limitada? É, um bom bocado, porque nada faz prever quando surgira um episódio. Imagine a sua vida como a dela... sair, ir às compras, trabalhar, sair pra se divertir... sempre pensando na possibilidade de um ataque, dos comentários mais ou menos maldosos e da falta total de SOLIDARIEDADE PARA COM O PRÓXIMO. Sabem o que é isso? É mais ou menos o que um tipo há mais de dois mil anos disse... como se chamava mesmo o tipo?? Peraí... tá na ponta da língua... se não me engano, o aniversário dele está próximo embora tenha morrido há muito...Ahhhhhh pois... foi Jesus.
Acho que nos dias que ando com mais pena de mim, de beiçola caída cá com as minha coisinhas miúdas... "alguém"que vela por mim... me coloca de caras com estas situações fazendo equivaler como um belo chute no meu traseiro para deixar de andar com tanta frescura e mania.
....e coragem minha gente... e nunca desistir mesmo quando nos dizem que não podemos. É virar a mesa, mesmo quando dizem que é tarde demais. Nunca é tarde... mas sem fazer alarde das nossas desgraças! TODO MUNDO TEM AS SUAS.
Apareçam
Rakel.
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