Decifras-me? Devoro-te...


Há cheiro de Terra em mim, o verde e a expansão pulsante da erva alta, a majestosa árvore que se ergue arrogantemente até ao alto. Há a pedra primordial onde as oferendas de trigo, o vinho servem de pendor de quem sobrevive do que planta. No meu olhar trago a semente do pensamento, o solo em que há de germinar a gavinha dos porquês e dos saberes. No meu ventre gero a vida  e no meu seio amamento o ser que dei a luz. Ergo montanhas para enaltecer, rasgo vales verdejantes onde se escondem os meus segredos, abro espaços para as searas e escondo em cavernas e precipícios as vertigens das emoções...



Trago o Fogo dentro de mim, o que acende a luz na escuridão, a que aquece o coração gelado na caminhada solitária. Acendo a paixão, cozo o pão da semente colhida e ilumino o teu caminho nocturno. Acalento a noite fria, mas se perco o controle devasto tudo por onde passa a minha fúria mal contida, não deixando mais do que cinzas e a lembrança de que posso ser mansa ou destruidora. Desfaço-me em lágrimas de fogo em tormentas vulcânicas imparáveis quando me tocam o coração, cubro com a minha paixão o solo que me recebe sem medo.Porque sabes que depois de tal fogo, as sementes germinam e trazem novas coisas, novas ideias e novas vidas...


Docemente corre de mim a Água pura, a que goteja na chuva cálida, na fonte que mata a sede do viajante solitário e no rio que imparável corre para o mar vasto. Doce quando me queres beber, salgada quando tentas dominar as minhas ondas, quando procuras descobrir o que está para lá do horizonte longínquo. Não te fies se vires em mim o lago sereno, pois as águas paradas correm muito mais depressa abaixo da superfície. Não me magoes, pois a minha fúria se torna torrente violenta, inundo tudo sem prestar atenção ao que desfaço, galgo a pedra e o carvalho, desfaço o dique e invado o que proteges. Bebe de mim com calma, não te sacies logo e lava o teu rosto cansado...


Não me vês, mas me sentes de cada vez que acaricio com o meu sopro, sou o Vento que espalha o aroma da Terra, que ateia o Fogo e que ondula a Água serena. Tenho em mim o movimento de tudo, espalho a semente, empurro o calor ou as velas do barco que carrega os sonhos. Doce brisa de Verão, mansa e terna amante, de dedos quentes e subtis, de toque invisível mas inesquecível. Sustento em mim o voo da águia e do corvo, da cotovia e da minúscula mosca. Não há montanha que não possa esculpir, sem pressas, sem planos. Apenas deixo-me levar ao sabor do momento. Mas a minha fúria se torna turbilhão destruidor, arranco a raiz e desfaço o que foi construído. Nada resta depois da passagem do cone que começa nas nuvens e que toca o solo e vagueio meio cega, entre um lugar e outro, erraticamente procurando desfazer o que me incomoda...



Tenho em mim a força do Espírito, a força que une sem diferenças os elementos, são poucos os que reconhecem em mim esse poder. Porque somente quem sabe sentir, sabe que ele, o Espírito, une os Cinco Elementos. Pulsa em mim para lá do vaso que o carrega, voa em liberdade pelo Ar, flui como a Água curativa, ilumina como Fogo e vive em estações como a Terra. Vê para lá do visível, escuta sem palavras e toca sem dedos o que está tão distante. É dele que os Elementos tomam o poder construtivo e destrutivo, carrego a certeza que por muito que mude de vaso, que nas eras se torne com outras formas e nomes, continuará imutável...


Chamam-me Quimera, indecifrável e complexa, intrincada e labiríntica, a união entre o céu e o inferno, o somatório de tudo no mundo... e não me entendem. Confusa vagueio no meio de tantos que não me enxergam, que não me escutam, mas que me sorriem paternalmente. Mantenho-me a distancia de tudo e no entanto... faço parte de tudo. Porque os deuses estudaram  e nos fizeram para que cada uma de nós, que nasceu Mulher, fosse a junção dos mundos e das estações. 



A Menina que sonha, que ainda tem dentro de si a réstia de inocência infantil, a que acredita, a que ri e brinca. A Mulher plena e fértil, a que apaixona e deixa-se apaixonar, a que frutifica e que oferece a provar as suas delícias. A Anciã, detentora da sabedoria, que conta histórias e carrega as cicatrizes das batalhas, a que oferece o ombro e o consolo na hora insone, que embala  quem sofre e explica os mistérios do Universo vasto...



Não sei se sou Quimera, mas sei que sou a unidade da Criança, Mulher e Anciã. Sei que sou aquilo para que fui criada  e sei que o meu caminho, ora longo, ora curto, tem o seu propósito. Nada é casual, nada é imutável ou permanente. Tudo faz parte do plano secreto que os Deuses traçaram para cada um de nós. Sei que a minha linha enreda-se nas linhas de todos que passam por mim, e cada acção que tomo, cada decisão que sigo, irá repercutir em cada linha enredada na minha...

Decifras-me?

Apareçam

Rakel.

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