Objectiva


Respirou fundo e guardou o ar naquele pedaço de segundo antes do clic estalar no ar, como se a possibilidade de exalar o ar, modificasse o ângulo ou a luz. O momento exacto e perfeito, num premir de botão acompanhado do som da película a ser puxada...
Sim, é verdade, por despeito ou afecto, andava sempre com a máquina já velhota, prenda de anos, assim que entrou para a faculdade lá já andavam uma boa dezena e tal de anos. Não pediu um carro, uma viagem, pediu uma máquina fotográfica, com as lentes que sonhou e namorou durante anos. É certo que já ninguém utilizava película fotográfica, agora, são os cartões de memória. Mas havia um certo ar de surpresa, um misto de curiosidade e enternecimento de cada vez que ia para a sala escura (que na verdade era uma das casas de banho do velho apartamento) e via surgir na bandeja de banho revelador, as imagens recolhidas em outras horas e dias. 

Depois era deixar naquele fio mal esticado e cheio de molas da roupa em madeira, os retalhos de momentos: a mão da peixeira na lota a cortar as cabeças de peixe. Só se viam os dedos abraçados à faca, a cor escura do sangue entranhado nas gretas da mão calosa e o brilho de madrepérola das escamas coladas às articulações. A objectiva estava apenas focada nisso, o resto era irrelevante: os gritos dela a anunciar o produto, o cheiro penetrante de mar, gente, peixe e lixo. O ângulo apertado de um prédio antigo, onde lá em cima a alvenaria parecia uma filigrana em pedra, orgulhosamente só e esquecida, dos olhares que teimam em pregar os olhos vazios o chão. Essa foi tirada a preto e branco, aliás uma hábito difícil de perder, pois cada detalhe, cada redobra dessa filigrana petrificada era visível de forma maravilhosa no papel.
Ou as gotas de chuva fazendo uma corrida pelos vidros da janela embaciada, a luz pálida da tarde a entrar nos caixilhos de madeira, servindo de linha de chegada para cada pingo gordo e redondo...haviam tantos desistentes que deslizavam vagarosamente, ou apenas se aquietavam num único ponto, como quem olha a pressa desnecessária dos outros...


Gostava de ficar naquela sala escura, do metódico molhar as folhas em banhos e água, do som dos pingos a caírem nas bandejas, dos cheiros agrestes, da música que ecoa nas paredes de azulejo e gesso. A luz vermelha, o esconderijo, a surpresa, faz disto tudo mais do que um passatempo relativamente caro, faz magia. Aquela sensação de guardar pedaços da vida, que muitas vezes a retina vê e não guarda, ou então, vemos e desejamos guardar na nossa memória tal e qual como a vemos e sentimos. Essa é a magia.

"Não vejo fotos de ti Dora..." disseram-lhe algumas vezes. É verdade, a única que tinha, num placar cheio de outras tantas fotos, nem sequer foi tirada por ela. Foi num piquenique com amigos, nela aparece descalça, com uns velhos calções de ganga, uma túnica fina de algodão, sentada na beira de um riacho com os pés descalços dentro d'água. O chapéu de palha com abas largas, ridículo como diziam, fazia uma enorme sombra sobre o rosto que sorria e mordia uma maçã. Foi um dia bom, bem passado, entre risos, conversas e lembranças que um amigo resolveu captar e guardar. 

"Não sei se ficou boa, mas gostava que estivesses sempre assim..."  disse-lhe o amigo que tirou a foto. E ficou mesmo boa: o enquadramento, a nitidez, e melhor que tudo, de cada vez que olhava para a foto, lembrava não só do que lhe fez sorrir naquele momento, como do amigo que lhe tirou a foto. Momentos.

Não sentia necessidade de tirar fotos dela mesma...para quê? Seus pais tinham álbuns e mais álbuns assinalando todas as mudanças de crescimento, as várias etapas da vida desde o nascimento. Hoje, sabia exactamente como era e porque era a Dora. Podia mudar a cor dos cabelos, moldar as formas do corpo conforme a necessidade, mas isso seria desnecessário. O essencial estava fora da vista, fora da captação da objectiva e de um zoom. O céu podia tingir-se cores diferentes em cada ocaso, mas o céu era sempre o mesmo, coberto de nuvens ou colorido. Apenas se viam os diferentes humores dele, tal como os dela. E ela não se perdia em amplitudes, mas em detalhes pequenos e esquecidos.


O seu álbum interior, cheio de fotos preto e branco e coloridas, num arquivo caótico, era tão seu, tão ao seu gosto... que não sentia necessidade de o colocar cá fora. Se alguém sentisse necessidade de folhear tal álbum, seria bem vindo. Mas teria que ter a sensibilidade necessária para perceber os diferentes ângulos e cores, e mais do que tudo, saber descodificar o que cada uma representava... apenas nos detalhes.Saber que, mais do que gostar de uma imagem... é saber entende-la, saber a sua história.

Há uma foto...aquela que sente como sua, seu eu interior, que se reflectiu num momento único. Foi há quatro anos numa tarde chuvosa de Fevereiro, na beira da praia caminhando na areia molhada, viu o longe o farol.
Impavidamente suportava a fúria do mar, resignado a enfrentar o que viesse e como viesse, mostrando que mesmo contra as marés e o tempo, ali estava, sempre indiferente aos possíveis estragos, ciente da sua missão. E fez dessa foto um poster que agora fica na sala de estar. "Brutal" disseram alguns, "assustador" disseram outros...mas era o que mais se parecia com um auto-retrato. "Fantástico"...pensava ela.


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Texto : Rakel

Foto: Autor Desconhecido

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