Fresias e Rosas



Entre as frestas das cortinas corridas da sala, a luz fosca da manhã entrava e as brasas da lareira iam perdendo a sua cor viva, dando lugar ao cinzento pálido.
Olívia abriu os olhos e viu a luz baixa da manhã entrando mansamente, acordando-a aos poucos para mais um dia que começava.

Procurou com os pés os chinelos jogados ao acaso, fechou o livro que tinha no colo e tentou espreguiçar-se. O corpo queixo-se de ter descansado no maple confortável mas pequeno demais para os malabarismos dos sonhos. Olívia prometeu-se nunca mais deixar-se dormir, mesmo que fosse embalada pela chuva na vidraça,
pelo calor da lareira e na companhia de um bom livro. Por muito tentador que fosse, por muita preguiça que sentisse, o dia seguinte mostrava que a cama não lhe dava esta sensação de ter dormido numa gaveta.

Levantou-se e espreitou pela janela, o mar revolto, o céu cinzento e a chuviscar e o voo baixo das gaivotas, era as pistas necessárias para saber que a praia seria só dela nesse dia.
De repente, o ar morno e aconchegante pareceu-lhe sufocante e viciado, largou de novo os chinelos na sala, agarrou no casaco de malha grossa, apanhou o cabelo à pressa num rabo de cavalo e abriu a porta da rua de rompante.


O ar carregado de sal e vento fresco bateu-lhe no rosto, acordou-a de vez e deu-lhe ganas para andar. Quatro dias fechada em casa tinham sido suficientes para colocar a cabeça em ordem? Olívia não sabia,
mas já precisava de ar e andar, mesmo que o dia não fosse de sol, calor e risos. O dia mesmo a clarear cada vez mais não perdeu a sua cor cinzenta, mas mesmo assim doía-lhe os olhos tamanha luz, e colocou
a mão em jeito de pala para ver o forte lá do alto da falésia.
Quando era menina, imaginava-se a princesa raptada, levada para o mar por piratas e lá do forte saíam valorosos marinheiros para a salvar. Mas isso eram nos dias que a lareira da casa da avó se enchia de frésias, rosas e margaridas, num vaso baixo  de louça branca. Do tempo dos primos e primas, das jantaradas e risos.

Lembrou-se da tarde em que comia a sua fatia de pão com Tulicreme e o copo de groselha fresca com a avó e lhe contou a sua história e do forte. A avó riu-se da brincadeira e disse-lhe :

"O forte pode proteger-te Lila, mas também isola-te do mundo."

Naquele tempo, não tinha entendido bem as palavras da avó, mas agora entendia perfeitamente o significado. Toda a vida tinha construído muros e vedações como forma de protecção. Barreiras, que a protegiam de tudo  aquilo que poderia vir a fazer sofrer de algum modo, mas... ao mesmo tempo, não lhe dava a chance de conhecer coisas boas.
Apertou o casaco de encontro ao corpo, fechou as mãos em punhos e cruzou os braços para proteger-se do vento húmido e cortante. Lembrar da avó que já se foi, trazia-lhe sempre o aroma das frésias e rosas ao nariz, mesmo no meio do ar salgado e agreste deste Outono na praia.
Os dedos dos pés brancos de frio continuavam a calcar a areia molhada, a esmiuçar-se entre os dedos em cada passo, e a entrar nas unhas já um pouco arroxeadas. Mas continuou na mesma, calcando os pés e desviando das ondas que esmoreciam perto deles.

Mesmo que seja uma metáfora, Olívia sentia que a vida toda tinha sido feita dentro do forte, aquele que ela construiu lá em cima no alto da falésia da sua distancia e relutância.
Ganhou com isso a possibilidade de não chorar com a partida da avó, de não lhe incomodar o divórcio dos pais, da correia para a escalada profissional, tudo de forma indolor e fácil. Mas chegados aos 36 anos, a sua vida protegida e indolor... era apenas como as pegadas que deixava na areia. Desvaneciam-se, não deixavam marcas maiores do que uma leve impressão que depois sumia numa nova onda.


Uma chuva miudinha começava então a cair, mas Olívia nem a sente, continua a respirar apressadamente golfadas de ar fresco, sente na boca a diferença das gotas doces da chuva contra o sal que se acumulou na caminhada. O doce e o salgado, os opostos que se completam... e os olhos se turvam sem o menor aviso. As lágrimas salgadas se misturam com as gotas de chuva, escorrem sem a menor diferença pelo rosto anguloso dela, gotejando pelo queixo abaixo.

Uma onda mais impetuosa apanhou os pés de Olívia de assalto, e ela, admirada, se deu conta que parecia morna a água do mar. Deu-se conta então que caminhou o tempo todo evitando as ondas do mar por causa do frio, mas justamente foi ele, o mar, que veio lhe aquecer os pés já insensíveis.

"O mar - dizia a avó- são como as paixões. Nos arrastam, nos envolve nas suas ondas, nos levam ou trazem conforme a vontade. Uns dias parece calmo, mas em outros se torna intempestivo. Mas não há quem não queira se sentir nele nem que seja uma vez na vida."

Mas Olívia foi passando pela vida sem querer deixar molhar os pés, andou de longe a rondar as paixões, fez de conta que as sentia, sentava-se na beirada da arrebentação. Mas nunca se deixou entrar e se levar. Nem uma única vez permitiu-se à isso.

Limpou os olhos na manga do casaco,  baixou-se e arregaçou mais as pernas das calças e fez o caminho de volta para casa sentindo as ondas do mar nos seus pés. Sentiu a areia fugindo aos poucos dos pés no meio da água... e perguntou-se:

"Será assim também? Sentir que nos falha o chão sob os pés??"

Riu-se como se antecipasse a mesma situação na vida real, de sentir os pés sem chão por baixo... e de repente desejou essa sensação louca de insegurança e levitação.

Nesse mesmo dia, a lareira foi limpa, o lixo despejado e as portadas das janelas fechadas. Com as malas dentro do carro, Olívia não sabia bem como faria para ganhar novas sensações, aquelas que fazem o coração bater mais forte ou se quebrar em mil pedaços.
Desejou que a avó estivesse viva, que pudesse dar uma opinião, algo que a orientasse. Sentiu de novo o cheiro de frésias e rosas tomando espaço no carro e dentro da cabeça de Olívia soou a frase:

"Sai do forte Lila, deixa-o pra trás."


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Fotos : Stela Rato

Letras: Rakel

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