E foi-se...



A primeira vez que o vi, foi por mero acaso, saía do prédio apressada, de chapéu de chuva na mão, rogando pragas ao mau tempo, de ter que levar mala, pasta, chapéu de chuva...não nasci Shiva.

Mas de relance vi-o, e o que me cativou foi o seu olhar penetrante e de um verde cristalino. Mesmo apressada, ficou na minha retina aquele olhar, de quem já tinha visto muitas coisas, muitos lugares e muita gente. Apressei meu passo e fui embora deixando-o no mesmo lugar. Fiz o meu dia como todos os outros, resolvendo como podia todas as coisas pouco agradáveis no mundo da burocracia.

Quando voltei para casa, lembrei-me daquele penetrante olhar verde, daqueles escassos segundos que meu olhar se prendeu no dele, em que vi um mundo inteiro em segundos. Havia ali uma força de independência, uma arrogância de quem não precisa de favores e muito menos ainda de quem se prenda à ele. Ele não tinha e não queria laços, apenas estava de passagem...

Passados uns dias tornei a vê-lo de novo, completamente distraído, de olhar perdido não sei para onde, nem em que tempo. Uma lembrança? Um som que despertou uma memoria longínqua? Ou foi o cheiro que veio no vento? Não sei, só sei que vi aquele olhar parado, de quem conhece os segredos do  mundo só de olhar, só de sentir.

Dei dois passos no chão molhado, a caminho do contentor do lixo com dois sacos nas mãos... e foi quando ele girou a cabeça e me olhou de frente. Fixou o olhar no meu rosto e ficou como que a ler o que via nos meus olhos. O cansaço, o desencanto desta vida monótona, a desesperança de um futuro melhor. Há alturas assim na vida de todo mundo. Eu tive essa época meio negra, muito retida, mal contendo a revolta de ver o tempo a escoar e nada a se resolver.

Durante uns curtos segundos ficamos assim, olhos nos olhos, eu contando a minha história e ele lendo-a toda, só assim olhando. Passei por ele de cabeça baixa, uma época que não conseguia olhar de frente ninguém. Fui ao contentor e despejei o lixo, quando voltei a cabeça, já lá não estava.

Quem me conhece, sabe que costumo dar alcunhas, na falta de um nome, de não saber qual tinha, dei ao dono dos olhos verdes o nome de Mephisto...

Os meses foram passando, o Inverno cedeu lugar à Primavera, de quando em vez avistava o Mephisto de longe, de cabeça erguida aproveitando a luz do sol. Com alguma confiança olhava para ele e sorria. O sorriso sempre foi um bom cartão de visita e cortesia. Mephisto sorria com os olhos cristalinos em resposta e nem sei porque, mas meu dia parecia correr melhor depois disso.

Talvez uma enorme coincidência, ou apenas a vida levando o seu rumo normal de altos e baixos, mas na verdade, aos poucos, dentro de mim e do meu T- Zero as coisas começaram a se encaixar. As coisas que enxergava sem solução começaram a se delinear num mapa bem traçado. Havia uma saída, há sempre esperança. Comecei a ver menos os olhos verdes encantadores de um dono arrogante...mas cada vez que o via, as coisas melhoravam...

Hoje, quase chegando o Verão, as resoluções e certezas que trago estão cada vez mais firmes. Encontrei lugar para as resoluções,descartei situações e coisas que não me faziam bem. E junto com os sorrisos de Mona Lisa, há a certeza de que muitas coisas boas virão.

Mas o Mephisto foi-se, faz umas boas semanas que não o vejo...talvez a sua missão já tinha sido cumprida, a de me fazer ver que, por mais que chova, um dia o sol brilhará, porque não pode chover sempre...


Mephisto era um gato cinzento e vadio que ficava junto com a Morgana, a gata preta de estimação do prédio.

Só quando comecei a me sentir mais segura de mim é que começou a deixar que o acarinhasse, lhe desse uma coçadinha na cabeça ou aceitava alguma guloseima que lhe arranjava.

Os budistas acreditam que os gatos, são almas de iluminados que durante uns tempos deambulam pelo mundo sem eira nem beira. Você não adopta um gato... o gato sempre te adopta. E segundo consta, quando um gato lhe aparece na vida, é porque há algo que precisa ser mudado, arranjado.

Seja mito, seja o que seja, a verdade é que embora agora me sinta bem comigo mesma, sinto falta daqueles olhos verdes límpidos e da pose arrogante do Mephisto.

Apareçam

Rakel

Comentários

  1. comecei a ler, calmamente, e pensei que estava a referir-se a um gato.
    continuei a ler com interesse e, afinal, era mesmo um gato :)
    às vezes as conversas em silêncio, são tão inspiradoras...
    ainda bem que venceu a luta da organização do seu T-Zero :) eu ando de lenço na cabeça, armada de espanador e vassoura, numa guerra sem fim, num T-qualquer coisa atafulhado de teias problematicas e pó de confusão... um dia destes penso que vou ter tudo em ordem... não sei é quando :)

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  2. Dulce,organizar um T - Zero não é tarefa fácil, é preciso arrumar gavetas, deitar muita tralha fora e decidir o que realmente vale a pena guardar e ficar com.
    Mas é sempre bom, sempre útil essa organização e selecção, mais não seja, pra vivermos bem com a gente mesma...

    Bjos

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  3. Tens razão. Organizar 1 T0 é pior que arrumar 1 mansão ou vivenda.

    Quando a vontade vem, a tarefa não é nada fácil, mas está lá o QB. para tudo o resto ocupar o seu lugar, não é?

    E como diz 1 amiga minha, quando nos dá para tarefas domésticas, é meio caminho andando para começar a separar o inútil do útil, o velho do novo, o lixo do essencial!

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  4. Ana... minha amiga... é verdade. Chega uma hora que não há como nos mexer no meio de tanta tralha...

    É deitar fora o inútil pra dar lugar à coisas novas e giras, aquelas que nos fazem bem né?

    Bjos

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  5. Avancem minhas amigas! Limpem tudo! e se for possível mudem mesmo de "casa"...não há limpeza melhor...começar do zero é duro, muito duro...mas tem mais de positivo do que negativo! eu já tenho a minha "casa" em ordem! e mantenho tudo renovado, de tempos a tempos faço o balaço, os ajustamentos necessários...e como sou dona das minhas escolhas, umas são melhores que outras...mas são as minhas, posso afirmar:Estou de bem com a vida!

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