Fim do Mundo V - A Guerra do Mascarado do Álcool Gel

 


No pacato e ensolarado Alentejo, numa pequena propriedade distante das aldeias e cidades, os nossos 4 bem conhecidos cavaleiros vão levando a vida com uma calma que nunca tinham experimentado antes.

Poderia dizer que tudo estaria normal, se normais fossem as características destas personagens tão nossas conhecidas. A Guerra já não o responsável pela cozinha; o problema nem era a habilidade, até porque é um tipo com boa mão para o tempero e confecção. O problema é que... como a Peste anda sempre besuntada de álcool gel, a Guerra sentia tentações de chegar um fósforo ao colega de profissão. 

E não foram um par de vezes que essa tentação chegou; as pieguices irritantes da Peste e os ataques de hipocondria faziam saltar a tampa da marmita do senhor da Guerra. Basicamente a Peste tem o ritual de em cada meia hora, besuntar-se de álcool gel dos pés à cabeça, mesmo que esteja desde Março sem sair de casa. Depois veste um fato daqueles usados pelos técnicos que controlam reactores nucleares, com luvas, botas, capacete e os tanques de oxigénio...que um dia a Guerra trocou por hélio e deu uma nova voz ao amigo.

Bom, o resultado de tanto álcool gel e o fato hermético é a pele queimada, cheia de bolhas e um certo caminhar ébrio e discurso de bêbado.Foi necessário chamar a saúde 24, receita de banho de amido de milho e uma catrefada de medicamentos que açulou ainda mais os ataques de hipocondria (já a Peste se dizia vítima de cancro da pele) o que punha a Guerra... em pé de guerra.

Para apaziguar os ânimos a Guerra foi trabalhar junto da Morte nos campos. Na cozinha ficou a Fome que já recuperado da dor de corno, encontra alegria a fazer açordas com peixe frito (que ele vai à pesca), arroz doce de travessa e anda num curso de olaria para aprender a fazer os barros de Nisa. Apaixonou-se pela arte, numa visita ao local para comprar queijos e bolos de azeite.

A Guerra então ficou encarregue das ovelhas e das vacas, tornando-se um pastor contemplativo e que em segredo escrevia poemas épicos.Por outro lado, a Morte sentia-se bem encaixado no mundo da agricultura; plantava trigo e centeio e a época da ceifa era a sua preferida: de gadanha em punho, sem capa, de tronco nu, lá andava ele a ceifar desde o nascer do sol até esse se pôr no horizonte quente e silencioso. E foi nesses preparos que uma Moura Encantada se encantou por ele...e fez-se faísca. 
A Morte agora, apesar da anterior vida de um lado para outro, abominado ou desejado conforme a necessidade, viu-se pela primeira vez amado de forma romântica. 

Por assim dizer, apesar dos pesares, a vida corria bem e todos estavam já vivendo na aceitação de que os mortais eram sem dúvida muito piores que eles e que a actual vida já era merecida. Deram mais de 2000 mil anos de trabalho contínuo. 

Essa vida pacata corria até a chegada de uma visita.

Toca a campainha da casa dos 4 moços (eram assim chamados pelos habitantes da aldeia vizinha) . A Fome tinha ido à aula de olaria, Guerra e Morte nos campos...sobrava a Peste. Esta abre o postigo da porta e vê pela viseira uma cara conhecida: Thanatos, a mão direita de Hades. 
 
- Thanatos, meu velho!! Há quanto tempo!!Mas... credo rapaz, que olheiras, que ar cansado...NÃO ME DIGAS QUE ESTÁS DOENTE??!! gritava a Peste cheia de medo.
 
- Não Peste,não estou doente. Bom dia para ti também e olha, só vim à procura da Morte.

-Ahh pois, bom dia, desculpe. Mas sabes que nos dias que correm todo cuidado é pouco. Olha, a Morte está no campo a ceifar a aveia. De certeza que consegues vê-lo a trabalhar.

-Ok, obrigado Peste e as melhoras... seja lá do que for...

Thanatos seguiu as indicações da Peste e deu com a Morte a juntar os molhos de aveia e a colocá-los num molho maior. Pensou em como seria bom alguns momentos de calma, viver do que a terra dá, sem o stress deste trabalho ingrato. Pensou na reforma, numa casinha ao pé do mar, umas pescarias no fim da tarde, uns passeios a beira mar...quem sabe um cão como companhia, a lareira no Inverno.

-Thanatos, meu amigo, o que te traz por cá? Venham daí esses ossos companheiro!!!

A Morte envolveu o amigo, tão antigo como o surgimento da humanidade, num abraço caloroso... e suado. Sentiu imediatamente a fraqueza do companheiro, outrora um grande senhor temido, forte e implacável.

A Morte afastou-o, segurou-o pelos ombros magros e viu o cansaço estampado no rosto e os olhos mortiços. 

- O que se passa contigo Thanatos? Se for algo que possa ajudar...

-São os mortais, Morte. Nunca pensei que houvessem tantos idiotas e irresponsáveis no mundo. Tomam decisões e atitudes que não são boas para eles. E dizem que a culpa é nossa, das entidades ou seres supremos. Dizem-se informados e mesmo assim, decidem ter atitudes de risco.

- É o livre arbítrio, a mais antiga das leis, meu caro amigo. 

Encaminhou Thanatos até uns cepos debaixo de uma chaparro frondoso e sentaram-se por um bocado. Passou-lhe uma caneca com água fresca e propôs-se a ouvi-lo.

- Com tantos avisos da propagação do Covid 19 e é vê-los a encher esplanadas, sem máscaras, sem distância. É vê-los a mandarem crianças às aulas, quando tinham prometido em Julho que todos os alunos e professores teriam meios, computadores e Internet, para terem aulas à distância e com segurança. 

-É... o ser humano tem a irritante tendência de ser o seu pior inimigo...

- Mas sabes o que eu acho mais estranho, Morte? Queixam~se do isolamento quando já se isolam diante do pequeno ecrã dos telemóveis, escravos dos likes e elogios falsos...na vaidade da propria imagem como o Narciso... lembras-te dele?

-Sim lembro, um tipo insuportável. Felizmente agora é só uma flor.

-Estou cansado... já tenho a boca em carne viva de tanto dar o beijo da Morte, não há batom do cieiro que me valha. 

-Já pensaste em usar um que é mistura de aloé vera e manteiga de cacau? Dizem que é bom...

-O que eu quero é que as pessoas tenham juízo, Morte! Se elas nos temem, por que raio elas nos chamam com estas atitudes? Olha, já pensei ir falar com o Marte e Xiva. 

-Então? Sabes que melhor mesmo seria falar com as Parcas, elas é que decidem as vidas das pessoas...

- Ahhh, pois... não, obrigado. A Átropos teve um crush por mim e eu tive que pedir à Zeus ajuda para que me deixasse em paz. Mandava-me coisa de 100 sms por dia e telefonava toda hora. Agora anda embeiçada com Morfeu, mesmo ele sendo casado. 

A morte olhou para o amigo e decidiu falar aquilo que concluiu depois de pensar no sentido do mundo, do seu próprio. E depois de fazer nascer da terra e colher, percebeu a mecânica do Universo. Ela não é fatídica, ela não é compensatória. A mecânica é outra...
 
- Bom... vou ser sincero contigo, Thanatos. A humanidade na verdade nunca precisou de nós. São seres auto-destrutivos, inconsequentes: por outro lado, são capazes de coisas maravilhosas e fantásticas e nós... bem nós estamos aqui para dar um motivo para pararem e pensarem. Das decisões deles jogam as consequências nas nossas costas e no nosso nome. Não penses muito nisso. Olha, hoje é sexta feira, ficas cá o fim de semana. Precisas de dormir, de descanso, de boa comida e de um pouco da nossa amizade. 
 
-Adoraria fazer isso... mas o boss, Hades, acho que não acharia muita graça...
 
-Sem espinhas, eu telefono e falo com ele e não se fala mais nisso. 
 
-Mas... não vou ser um incomodo, pois não?
 
A Morte olhou para o amigo e sorriu de maneira maliciosa.
 
-Thanatos, vivemos com a Peste...ele é o incomodo, não tu. Mas vou adorar ver qual vai ser o novo ataque de nervos dele e a reacção da Guerra. 

E já podemos imaginar o fanico da Peste ao saber do hóspede inesperado...

Rakel.

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